Versão Inglês

Ano:  1999  Vol. 65   Ed. 3  - Maio - Junho - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 249 a 253

 

Sarcoidose Rino-Laríngea - Relato de Um Caso e Revisão da literatura

Rhino-Laryngeal Sarcoidosis - Report of a Case and Reviewof the Literature.

Autor(es): Roberto Campos Meírelles *;
Ciriaco Cristóvão Tavares Atheríno **,
Marcílio Ferreira Marques Filho***.

Palavras-chave: Sarcoidose, granuloma

Keywords: sarcoidosis, granuloma

Resumo:
Os autores apresentam um caso de Sarcoidose em paciente do sexo feminino, com manifestações clínicas nasais e laríngeas, além do quadro convencional. Enfatizam os achados nasais e laríngeos, que são raros, e discutem sobre o quadro clínico, diagnóstico, tratamento e evolução da doença.

Abstract:
The authors present a case of a woman with laryngeal and nasal involvement by sarcoidosis, associated with the standard clinical features of the disease. They emphasize the uncommon nasal and laryngeal findings and discuss the diagnosis, treatment and evolution of the disease.

INTRODUÇÃO

A sarcoidose, ou doença de Besnier - Boeck - Schaumann (BBS), foi descrita pela primeira vez em 1875 por Hutchinson, que a chamou de doença de Mortimer, em referência ao nome do paciente cujo quadro clínico relatou16. Em 1889, Besnier cita um caso semelhante, denominando-o de lúpus pernio. Boeck relata, em 1899, tumores cutâneos como sarcóides dérmicos. Em 1914, Schaumann identifica aspectos histológicos comuns, descrevendo-os como doença sistêmica com comprometimento linfático". Em 1934 fica conhecida como características de doença de BBS, pelo Congresso de Strasbourgi.

É uma doença granulomatosa, multissistêmica, de etiologia e patologia indeterminadas; porém, com alterações evidentes do sistema imunológico, como proliferação de células inflamatórias na área ou órgão afetado (granuloma), depressão das respostas cutâneas de hiper-sensibilidade tardia aos antígenos e síntese e circulação em excesso de imunoglobulinas7. O envolvimento dos órgãos é freqüentemente assintomático6. Sua definição é puramente histológica: presença de nódulos epitelióides seta necrose caseosa".

Tem disseminação mundial, com incidência diferente por países16:0.04/100.000 habitantes na Espanha e 64/100.000 na Suécia. Parece ser mais freqüente em negros nos EUA, não sendo considerada doença contagiosa".

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

C. C. G., com 39 anos de idade, do sexo feminino, parda, do lar, natural de Nova Iguaçu /RJ.

A paciente procurou o Serviço de Otorrinolaringologia com queixa de obstrução nasal, há dois anos, e rouquidão, há alguns meses. A obstrução nasal era acompanhada de rinorréia clara, às vezes purulenta, com eliminação esporádica de crostas e fetidez. A disfonia, intermitente, piorava com esforços vocais. Referiu acidente automobilístico aos 17 anos, quando ficou em coma por 19 dias. Submetida a exérese de nódulo de marna, em 1986. Teve tuberculose pulmonar em 1988, tratada com esquema tríplice por seis meses. Novas operações de mama, em 1993 e 1995, devido a mastite crônica recorrente. Histerectomia e ooferectomia em janeiro de 1996. Tem dois filhos, com 15 e 17 anos, saudáveis. Está em tratamento medicamentoso para hipertensão arterial.

O exame otorrinolaringológico mostrou lesões tipo pápula, ulceradas, em asa nasal, bilateralmente (Figura 1). Havia infiltração difusa da mucosa nasal, com comprometimento do septo e da parede lateral, bilateralmente, com estenose total na válvula esquerda e na parte posterior da fossa nasal direita (Figura 2), onde observamos pequenas áreas de hemorragia, com crostas aderentes. Na laringoscopia, notamos lesões exofíticas e granulosas na epiglote, pregas ariepiglõticas, pregas vestibulares e pregas vocais, com edema e hiperemia acentuadas (Figura 3). Mobilidade laríngea preservada com coaptação satisfatória.



Figura 1. Lesões papulares ulceradas em asas nasais.



Figura 2. Mucosa nasal infiltrada e hiperêmica com tendência a estenose.



A radiografia do tórax (Figura 4) mostrou múltiplos nódulos calcificados, de pequeno volume, nas regiões para-hilares e condensações intersticiais e alveolares nos terços médios dos pulmões. Os seios tosto-frênicos estavam livres. Área cardíaca normal. Presença de fratura antiga na clavícula esquerda. A tomografia computadorizada do nariz e dos seios paranasais (Figura 5) revelou bloqueio de meato médio esquerdo, aumento de volume da concha inferior esquerda e lesão cística etmoidal esquerda. Em outro exame subseqüente, vimos espessamento septal e destruição óssea das conchas inferiores, com perda da anatomia habitual (Figura 6). Os exames laboratoriais revelaram anemia, leucopenia e linfopenia. As provas de função hepática e a dosagem de cálcio sangüíneo e urinário encontravam-se normais.



Figura 3. Aspecto pseudotumoral nas pregas vestibulares epregas vocais.



Figura 4. Nódulos múltiplos calcificados. Condensações instersticiais e alveolares no terço médio bilateralmente.



DISCUSSÃO

A raridade da doença em nosso meio e a pouca freqüência de comprometimento otorrinolaringológico nos casos descritos motivaram-nos à publicação. Some-se a isto a coexistência de duas formas raras de manifestação, a nasal` e a laríngea15, já com algum grau de dificuldade respiratória.

Acomete mais as mulheres entre 20 e 50 anos. Compromete todos os órgãos, com predileção especial pelos pulmões (94%); gânglios linfáticos (37%); pele, fígado e olhos (21%); ossos, músculos, glândulas exócrinas, coração, sistema nervoso e rins (10%); amígdalas palatinas (2,4%); nariz e mucosa oral (2,1%) e laringe (1,5%)16,18.

Habitualmente, os gânglios são de volume moderado, firmes, indolores, móveis e sem aderência à pele, involuindo sem abscedar ou fistulizar. As localizações cutâneas são preferencialmente na face1 e classificadas em quatro tipos:
1. Sarcóide de Boeck, que é a variedade mais comum, sob a forma de pápulas ou de nódulos simétricos.
2. Nódulos subcutâneos profundos, em número limitado, de 1 a 4 cm de diâmetro.
3. Placas de infiltração, azuladas ou peroladas, localizando-se particularmente sobre a asa nasal, a fronte, região malar, lóbulo e pavilhão da orelha. Neste estágio sobrevêm lesões ósseas simultâneas.
4. Variedade eritrodérmica3,19.

As localizações glandulares ocorrem em torno de 6% dos
casos, mais nas parótidas e pouco freqüentemente nas submandibulares e sublinguais4. O comprometimento parotidiano exterioriza-se de três modos14:

1. Hipertrofia simples, bilateral, indolor e que evolui para a cura.

2. Síndrome de Heerfordt, constituída pela associação de tumefação parcotidiana e iridocoroidite, caracterizada pela presença de nódulos não confluentes sobre as conjuntivas bulbares e palpebrais. Pode haver comprometimento do segundo e quinto pares cranianos. Também evolui para a cura espontânea.

3. Síndrome de Mikulicz, caracterizada pela inchação crônica das glândulas lacrimais e de uma ou mais glândulas salivares, particularmente as parótidas. Coexiste com secura das conjuntivas e da boca. A sialografia mostra canalículos rígidos, de calibre uniforme, sem impregnação das vias terminais ("imagem em árvore morta"). As alterações da glândula tireóide são raras10.

Todos os nervos cranianos podem ser afetados, exceto o ramo motor do quinto par. O comprometimento do facial é quase sempre bilateral, geralmente no curso da síndrome de Heerfordt. A agressão cócleo-vestibular é menos freqüente",.

As localizações mucosas são as mais raras. As lesões interessam principalmente às fossas nasais e os seios paranasais21,12. Apresentam classicamente duas formas e se manifestam por coriza purulenta com obstrução nasal e crostas: (A) Nódulos de volume variado, que se localizam sobre o septo ou as conchas inferiores. Sua coloração é inicialmente branca opaca, com discretas linhas hiperêmicas, tornando-se depois amarelo ocre. (B) Inflitração difusa, correspondendo a estágio mais avançado. Toda a mucosa está extremamente espessada, pálida, infiltrada e endurecida ao toque. Evolui para a formação de tecido fibroso, com conseqüente estenose das fossas nasais, como o nosso caso. Pode-se observar também perfuração septal ou pólipos nasais.



Figura 5. Velamento etmoidal, destruição das conchas inferiores e cisto maxilar.



Figura 6. Bloqueio de meato médio e aumento da concha média esquerdos e espessamento septal.



No comprometimento bucofaríngeo e laríngeo observamos nódulos pequenos, esbranquiçados ou amarelados, translúcidos, isolados ou agrupados, sem apresentarem ulceração, de localização difusa5. A manifestação amigdaliana não é característica, podendo a região apresentar-se, por vezes, pálida e aumentada de volume, causando odinofagia1. Os nódulos podem, particularmente no nível da laringe, assemelharem-se à infiltração generalizada da mucosa, estendendo-se para a subglote e ocasionando disfonia e dispnéia. Podem ainda apresentar aspecto pseudotumoral, confundindo com o câncer15,1, o que verificamos em nossa paciente.

O comprometimento ósseo da face é extremamente raro e, quando presente, localiza-se no frontal, mandibula, maxilar e ossos próprios do nariz2.

Os exames laboratoriais revelam linfopenia, hiperglobulinemia, hipercalcemia e hipercalciúria. As provas de função hepática mostram aumento de fosfatase alcalina. A radiografia do tórax é importante devido ao elevado percentual de comprometimento pulmonar. As alterações classificam-se eme°: grau 0 - normal; grau 1 - aumento de linfonodo, sem alteração parenquimatosa; grau 2A - linfadenopatia com doença parenquimatosa difusa; grau 2B-doença parenquimatosadifusa, sem linfadenopatia; e grau 3 - fibrose pulmonar. O achado mais freqüente é a reticulonodularidade, consistindo de nódulos irregulares, pequenos, de densidade linear, medindo de 3 a 5
mm15,20.

Algumas reações imunológicas podem ser realizadas, o que auxilia no diagnóstico ao mostrar diminuição ou ausência das reações cutâneas de hiper-sensibilidade retardada, aumento de produção dos anticorpos humorais e positividade no teste de Kveim-Siltzbach, representada pela existência de granuloma epitelióide sobre a biópsia cutânea, efetuada seis semanas após a injeção intradérmica do antígeno. O teste negativo (20% dos casos) não afasta o diagnóstico de sarcoidose, porque pode ocorrer em casos de lesões localizadas. Os falsos positivos (5% dos casos) ocorrem nos linfomas de Hodgkin16.

O estudo histopatológico revela tubérculo epitelióide sem necrose caseosa, envolto por uma coroa de linfócitos. Encontram-se células gigantes multinucleadas e, ocasionalmente, eosinófilos. Estas células gigantes podem conter três tipos de inclusão intracitoplasmática: corpúsculos de Schaumann, corpos asteróides de Wolbach e esferas centrais. Deve se excluir agentes microbianos e corpos estranhos16,20,13.

Chamamos a atenção para o diagnóstico diferencial, principalmente com a tuberculose e o câncer laríngeo. Os pacientes devem ser acompanhados, pois, apesar do alto percentual de cura espontânea (95%), a taxa de mortalidade de 5% exige que o médico mantenha vigilância rigorosa, observando qualquer prenúncio de condições que levem à indicação de tratamento específico18.

A evolução é, de forma geral, favorável, sendo o mais freqüente a cura no período de alguns meses até três anos'. As lesões cutâneas são as mais rebeldes, podendo persistir por muito tempo14. A taxa de mortalidade pode ser devida a infecção tuberculosa, fibrose pulmonar, lesão miocãrdica ou neurológica ou nefrocalcinose. Consideram-se como critérios de atividade da sarcoidose a presença de sinais clínicos, alterações de função pulmonar, níveis séricos elevados de cálcio e de angiotensina I e o achado de alveolite no lavado brônquico6,17.

A abordagem terapêutica é sempre multidisciplinar. O princípio que deve nortear a terapêutica é o de que a evolução regressiva é a regra em 85 a 95% dos casos. O único tratamento clínico eficaz é a corticoterapia, indicada quando existirem complicações ou localizações expondo o doente a seqüelas graves e definitivas, como o comprometimento de órgãos vitais. As principais indicações são: sinais clínicos de insuficiência respiratória progressiva, uveíte anterior com risco de cegueira, lesões cutâneas extensas e antiestéticas, neuropatia periférica, comprometimento cerebelar e hipercalcemia e hipercalciúria com comprometimento das funções renais16,14,4,17.

A droga de escolha é a prednisona, na dose de 30 a 40 mg/dia, podendo chegar até 50 a 60 mg/dia, devendo haver boa resposta em duas a quatro semanas12,17. Usa-se corticóide tópico para lesões dermatológicas e oftalmológicas4. Alguns autores prescrevem methotrexate e/ou cloroquina para lesões cutâneas18. É importante a dieta pobre em cálcio. Normalmente não há boa resposta aos aerossóis broncodilatadore15.

A cirurgia está indicada quando houver obstrução respiratória alta, sempre para desobstrução e nunca curativa13.

Em nossa paciente realizamos a traqueotomia, de forma eletiva, porque houve progressão da doença, principalmente das lesões exofíticas laríngeas, que causaram desconforto respiratório. Atualmente, após corticoterapia por oito meses, o quadro clínico regrediu, com melhora das lesões nasais e laríngeas e descanulização. Encontra-se em seguimento há dois anos.


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* Professor Adjunto e Coordenador da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Professor Assistente de Otorrinolaringologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica / RJ. Pós-Graduando (Doutorado) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Médico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia da Policlínica de Botafogo, Rio de Janeiro /RJ.

Trabalho apresentado no XXXIII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, em Recife /PE, em novembro de 1996. Trabalho realizado na Pró-Otorrino. Endereço para correspondência: Serviço de ORL da Policlínica de Botafogo - Avenida Pasteur, 72 - Botafogo - 22290-240 Rio de janeiro /RJ. Telefone: (021) 543-1909 - Fax: (021) 543-1095 - E-mail: meirelles@radnet.com.br. Artigo recebido em 10 de agosto de 1998- Artigo aceito em 12 de outubro de 1998.

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