Versão Inglês

Ano:  1999  Vol. 65   Ed. 3  - Maio - Junho - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 243 a 246

 

Artrite Séptica Têmporo-Mandibular. Apresentação de Caso.

Septic Arthritis in the Temporoniandibular Joint. Case Report.

Autor(es): Francisco Verissimo de Mello Filho*,
Adilon Passinho Koury**,
Rui Celso Martins Mamede*.

Palavras-chave: artrite séptica, articulação têmporo-mandibular, infecção

Keywords: septic arthritis, temporomandibular joint, infection

Resumo:
Os autores relatam um caso de artrite séptica têmporomandibular atendido na Unidade de Emergência do HCFMRP, que se desenvolveu após um episódio de tonsilite aguda. O paciente apresentava odinofagia com irradiação para a região parotíde, a associada a edema local e com restrição para a abertura oral. A radiografia simples mostrou aumento do espaço articular e excursão condilar prejudicada à direita. A tomografia mostrou aumento de volume das partes moles peri-articulares e irregularidade de contorno da face articular do côndilo à direita. O tratamento antibiótico instituído foi a administração de clindamicina por via oral. Houve boa evolução do caso, com regeneração das lesões articulares ao controle tomográfico. Os autores tecem comentários, dando ênfase aos fatores de risco e às manifestações clínicas mais comuns na artrite séptica têmporo-mandibular.

Abstract:
The authors report a case of septic arthritis in the temporomandibular joint treated at the Emergêncy Unit of the Univesity Hospital, Faculty of Medicine, University of São Paulo, which has developed after an episode of acute tonsillitis. The patient presented odynophagia irradiated to the parotid region associated with local edema and limited mouth opening. Regular radiography showed an increase of the articulation space and impaired condylar excursion to the right side. CT showed an increase in volume of the periarticular soft parts and irregular contour of the articular surface of the condyle on the right side. The antibiotic treatment prescribed was oral clindamycin. There was a good evolution of this case with recovery of articulation lesions observed at CT examination. The authors emphasize the risk factors and the most commmon clinicai manifestations of temporomandibular septic arthritis.

INTRODUÇÃO

A artrite infecciosa têmporo-mandibular é uma entidade rara em nossos dias e pouco registrada na literatura5 até 1979, quando passou a figurar regularmente nas publicações6, excetuando-se os quadros clássicos de artrite gonocócica do recém-nato. O pequeno número de casos registrados pode resultar em erros de diagnóstico ou desinteresse em registra-los; porém, vários autores sugerem que uma porcentagem significaste de casos de anquilose têmporo-mandibular pode ser resultante destes erros diagnósticos5.


APRESENTAÇÃO DE CASO CLINICO

Paciente masculino, com 23 anos de idade, branco, procurou a Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo (FMRP-USP) com queixa de que há quinze dias apresentava odinofagia, com irradiação dolorosa para a região parotídea à direita, associada a febre. Havia procurado atendimento médico, quando foi diagnosticada tonsilite aguda e iniciado tratamento com amoxacilina. Evoluiu com desaparecimento da febre, restrição da abertura oral e abaulamento na região parotídea à direita. Retornou ao médico, que manteve a antibioticoterapia e prescreveu antiinflamatório não esteroidal, após o quê houve melhora completa da odinofagia, melhora parcial do abaulamento da região parotídea e manutenção da restrição à abertura oral, sintoma este que o fez procurar nosso Serviço.

Quanto aos antecedentes, o paciente negou trauma facial exerno, doenças auto-imunes ou infecto-contagiosas específicas. Referia tratamento ortodôntico durante a adolescência, sem quaisquer complicações.

Ao exame físico, apresentava um abaulamento discreto na região parotídea à direita, sem sinais flogísticos. A abertura oral encontrava-se restritra para aproximadamente 20 mm interincisais, não havia alterações da mímica ou da sensibilidade da face. A onoscopia e oroscopia estavam normais. A oroscopia revelava um discreto abaulamento do palato mole à direita, com leve deslocamento medial da tonsila palatina direita, dentes em bom estado de conservação com disto-oclusão de incisivos. À palpação facial, havia dor em topografia de articulação têmporomandibular (ATM) direita, e não se percebiam movimentos de excursão condilar do mesmo lado, à palpação.

O hemograma mostrava 10.100 glóbulos brancos, com 69% de neutrófilos, 28% de linfócitos, 1% de eosinófilos, 1%, de basófilos e 1% monócitós. A velocidade de hemossedimentação era de 41 mm na primeira hora. Foram solicitados ainda a dosagem de anti-estreptolisina-O, exame imunoenzimático para tuberculose, fator anti-núcleo e fator reumatóide, que se mostraram normais. A dosagem de alfa-ácido-glicoproteína foi de 208 mg/dl.



Figura 1. Tomografia computadorizada da articulação têmporomandibular direita com artrite séptica pré-tratamento.



As radiografias simples da ATM em incidência de Schüller, com boca aberta e fechada, revelavam um aumento do espaço articular à direita em relação ao outro lado, e uma excursão condilar direita evidentemente prejudicada. A tomografia computadorizada confirmava o aumento do espaço articular direito, além de um aumento do volume de partes moles periarticulares, com reforço homogêneo à fase de injeção de contraste, ficando evidente a irregularidade de contornos da face articular do côndilo direito, com áreas de reabsorção e lise ósseas (Figura 1).

Iniciou-se tratamento antibiótico com clindamicina, em uma posologia de 300 mg via oral, de 6/6 h, e diclofenaco de sódio 50 mg, de 8/8 h, para que fosse possível iniciar a cinesioterapia. Não houve internação hospitalar.

O paciente evoluiu com melhora da dor à abertura oral, diminuição completa do edema da região parotídea e maior amplitude da abertura oral, indicando boa resposta ao tratamento instituído. Após sete dias, foi mudado o esquema posológico da clindamicina para 600 mg, de 12/12 h, o qual foi mantido até completar 30 dias de tratamento. A fisioterapia apresentou um sucesso progressivo e foi mantida sob a forma de exercícios para serem realizados em ambiente domiciliar; e, após o primeiro mês de tratamento, já permitia uma abertura oral próxima a 30 mm.

Após seis meses, o paciente foi submetido à reavaliação clínica, não apresentava queixas e sua abertura oral era de 40 mm, com manutenção da linha média, inspeção e oroscopia normais, sem crepitações no nível da ATM direita. Nova tomografia computadorizada foi realizada e mostrou apenas discreta irregularidade da face articular do côndilo direito, com o espaço articular preservado (Figura 2).



Figura 2. Tomografia computadorizada da articulação têmporomandibular direita seis meses após tratamento.



DISCUSSÃO

O caso apresentado exemplifica os fatores de risco e manifestações clínicas mais comuns na artrite séptica têmporomandibular.

O paciente relatou com clareza o seu quadro clínico de tonsilite, que precedeu imediatamente o aparecimento das queixas relacionadas à ATM. Sabe-se que as infecções de cabeça e pescoço estão relacionadas com o aparecimento da artrite têmporo-mandibular, sendo que a contaminação pode se originar de uma contaminação direta, a partir de estruturas adjacentes ou via hematogênica6. O staphylococcus aureus é o agente mais freqüentemente isolado nesses casos, e parece haver um tropismo pela cartilagem articular mediada pela estrutura do glicocálix4. As doenças auto-imunes sistêmicas constituem outro fator de risco no aparecimento dessa doença², o que foi descartado com os exames solicitados. O uso de antiinflamatórios não esteroidais, referido durante início do tratamento, também é citado como fator predisponente de disseminação infecciosa de origem faríngea, em virtude da alteração produzida na função de granulócitos que constitui a primeira linha de defesa imunitária4.

O quadro clínico citado na literatura é variado, mas o trismo é sempre referido5,3,1, sendo também constantes a tumefação pré-auricular5,6,2,3,1 e a má-oclusão com desvio mandibular contra-lateral, seja por posição antálgica ou por aumento do conteúdo articular5,1. Ao quadro local podem se ajuntar as alterações das infecções contíguas e as anormalidades decorrentes de uma evolução desfavorável, como as fístulas, abscessos e necrose³. No caso apresentado, o trismo era a queixa principal, sendo que a tumefação na região parotídea direita e o desvio mandibular contra-lateral foram rápida e facilmente notados ao exame físico. Os achados oroscõpicos de edema do palato mole e tonsila palatina direitos podem ter sido causados por celulite local, às custas da tonsilite, e se constituir no sinal indireto de uma contaminação a partir deste foco.

A apresentação clínica era clássica, mas o hemograma e a velocidade de hemossedimentação não estavam muito alterados; entretanto, esses achados não estão invariavelmente presentes e não excluem a artrite séptica².

A punção aspirativa exploradora da ATM pode ser preconizada5,1, mas é freqüentemente "branca" (metade dos casos) e deve ser realizada se os exames de imagem revelarem uma coleção6. Em nosso caso, decidimos prescindir deste procedimento, visto que se trata de procedimento invasivo não totalmente inócuo, podendo disseminar infeção local3,1.

Dentro de certo contexto, o diagnóstico de artrite séptica têmporo-mandibular repousa unicamente nos estudos radiolõgicos da ATM¹. A radiografia simples da mandíbula mostra um alargamento articular e um deslocamento anterior e inferior (ântero-posição condílea), traduzindo um aumento do fluido intracapsular e uma posição antálgicas5,3. Infecções agressivas podem mostrar destruição da eminência articular ou do processo coronõide; antes do envolvimento condilar; e o espaço articular, inicialmente alargado, pode se tornar mais estreitado em virtude da destruição do menisco e do osso em infecções de instalação mais demorada 5.

As imagens tomográficas mostram as alterações ósseas mais precocemente que a radiologia convencional, incluindo as erosões condilares5,1, o que foi observado neste caso (Figura 1). A tomografia computadorizada também é útil para se fazer o diagnostico diferencial com os neoplasmas da cápsula da ATM, dos quais o mais comum é a condromatose sinovia15. O estudo tomográfico mostrou, à fase contrastada, alterações de partes moles; porém, estas podem ser melhor avaliadas através da ressonância nuclear magnética, que mostra com precisão fenômenos inflamatórios peri-articulares, como um reforço de contraste, após injeção de gadolínio, no músculo pterigóideo lateral, em consonância com a hipodensidade do mesmo músculo, visível à tomografia computadorizada e que seria causado por uma contratura reflexa que explicaria a ântero-posição condilar5.

A literatura consultada mantém um consenso no sentido de que o tratamento antibiótico deve ser iniciado o mais rápido possível; porém, vários esquemas são recomendados. A antibioticoterapia deverá ser iniciada empiricamente visando o S. aureus e as culturas (líqüido articular ou hemocultura, se necessário) deverão nortear a terapia antibiótica que se seguir, devendo perdurar por um mínimo de 30 dias5. No caso apresentado, utilizou-se a clindamicina em virtude de seu espectro de ação e penetrância no tecido ósseo-cartilaginoso; e, como a resposta clínica foi favorável, manteve-se esta opção por 30 dias, em concordância com Bounds, que defende que a dosagem e duração da antibioticoterapia devem ser apropriadas a cada paciente².

A drenagem cirúrgica é sugerida se há formação de abscessos, se as mudanças ósseas são radiologicamente evidentes ou na falta de resolução com a antibioticoterapia5. Além da drenagem articular, outros procedimentos já foram propostos, como a excisão condilar precoce, desbridamento e irrigação pós-operatória da cavidade articular², além de tratamento artroscópico por irrigação e lavagem³.

O descanso articular e dieta leve são recomendados para o conforto do paciente e para evitar o acúmulo de líquido sinovial e a resposta inflamatória5. No caso apresentado, utilizou-se dieta líquida e pastosa e iniciou-se imediatamente fisioterapia para a abertura oral; porém, Benatre e colaboradores relatam caso em que a fisioterapia não impediu a evolução para uma constrição permanente dos maxilares, com o desenvolvimento da artrose¹.

A boa evolução do caso apresentado contrasta com o seguimento desfavorável encontrado por alguns
autores 6,2,1. Acreditamos que isto ocorreu em virtude do bom estado geral apresentado pelo paciente, associado a um diagnóstico precoce e boa resposta ao tratamento clínico instituído. Há registros de casos com complicações do tipo osteíte de base de crânios5 e destruição articular².

Há também registro de regeneração das perdas ósseas ocorridas durante a artrite após quatro meses do aparecimento dos sintomas³, além de lesão articular permanente em mais de 50% dos casos5. No caso apresentado, houve uma regeneração quase total da superfície articular no sexto mês de evolução, visível ao exame tomográfico (Figura 2); entretanto, a antibioticoterapia isolada pode não prevenira destruição articular, visto que as enzimas lisossômicas e os debris antigênicos bacterianos podem causar uma artrite pós-infecciosa estéril progressivas5.

CONCLUSÃO

A artrite séptica têmporo-mandibular é uma complicação habitualmente decorrente de infecções da cabeça e pescoço, que pode ter um decurso desfavorável e de grande morbidade. Casos iniciais, em que o diagnóstico é logo constatado e o tratamento é prontamente instituído, como aqui apresentado, têm geralmente evolução benigna com poucas seqüelas.

Os exames de imagem, como tomografia computadorizada, permitem um diagnóstico precoce, dando-nos a confirmação de um caso suspeito, o que permite indicar o tratamento e evitar conseqüências potencialmente danosas.

Não devemos nos descuidar do exame físico locoregional e geral, assim como da história clínica, pois podem nos dar boas indicações quanto ao foco primário da infecção e indicar a melhor terapêutica antibiótica empírica inicial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

l. BENATRE, D.; BERTRAND, J. C.; RAULO, Y; GRELLET, M. - Arthrites temporo-mandibulaires ankylosantes après cellulites massétérines. Rev. Stomatol. Chir. Maxillofac., 86(6): 392-7, 1985.
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3. BUCHET, C.; PERTRUZON, B.; BARRALLE, M. M. et al. - Arthrite infectieuse temporo-mandibulaire. A propos d'un cas chez 1'adulte. Rev. Stomatol. Chír. Maxillofac., 95. 333-8, 994.
4. CHAPLAIN, A.; GOUELLOJ. P.; DUBINJ. - Cellulites cervicales nécrosantes aiguës à porte d'entrée pharyngée: rôle possible des anti-inflammatoires stéroïdiens et non steroidiens. A propos de 5 observations. Rev. Laryngol. Otol. Rhinol., 117 377-80, 1996.
5. LEIGHTY, S. M.; SPACH, D. H.; MYALL, R. W. T. et al. - Septic arthritis of the temporomandibular joint: review of the literature and report of two cases in children. Int. J. Oral. Maxillofac. Surg., 22: 292-7, 1993.
6. THOMSON, H. G. - Septic arthritis of the temporomandibular joint complicating otitis externa. J. Laryng. Otol., 103:319-21, 1989.




*Professor Doutor junto ao Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo.
**Ex-Médico Residente do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência: Francisco Verissimo de Mello Filho- Hospital das Clínicas da FMRP-USP -Departamento de Cirurgia. Ortopedia e Traumatologia- Campus Universitário - 14048-900 Ribeirão Preto /SP - Brasil. Artigo recebido em 11 de dezembro de 1998. Artigo aceito em 6 de abril de 1999.

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