Ano: 1936 Vol. 4 Ed. 5 - Setembro - Outubro - (10º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 497 a 509
FERIMENTOS POR ARMA DE FOGO, ATINGINDO A BASE E A PONTA DO ROCHEDO. PETROSITE E SINDROMA DE COMPRESSÃO. INTERVENÇÃO NO 21.° DIA - CURA.
Autor(es): MATTOS BARUTTO
Os ferimentos do ouvido por arma de fogo, como os divide Alexander, distinguem-se em diretos que são os consequentes a tiros desfechados em pleno ouvido, em maioria absoluta por tentativa de suicídio, e os indirectos, consequentes a esquirolas, fraturas, hemorragias e ao deslocamento de tecidos pelo canal de trajeto da bala, ou consequentes a forte deslocamento de ar pelo disparo proximo.
Haymann os classifica ainda segundo são de tiros proximos ou á distancia, sendo que os primeiros são os casos de tempo de paz e os segundos os tiros de combate. E' que entre o tiro que se dá em tempo de paz e os da guerra ha sempre uma diferença; os primeiros são em geral de armas de caça ou revolveres de bolso, com balas de chumbo, enquanto que os segundos são tiros com balas encapsuladas em aço, impulsionadas com muito maior ação destruidora.
Quasi sempre o ferimento do ouvido é acompanhado de neurose de comoção, neurose traumatica ou neurose de pavor. Como tambem são comuns os disturbios psíquicos e afecções auditivas histericas ou mesmo simulações banaes (Alexander).
Ainda que o projetil não encontre diretamente o rochedo, tomando as mais variadas direções, poderá sobrevir um conjunto de sintomas denunciando uma lesão ou um abalo do ouvido interno; dependendo isso não só da proximidade do trajeto do projetil, como da resistencia do osso nessa direção. Mais frequentemente são manifestações unicamente do coclear (casos de Alexander, Beck, Haymann, Neumann e Ruttin, citados por Alexander), podendo ser unilaterais, ou mais intensas do lado do ferimento quando bilaterais. Esses sintomas, cocleares e vestibulares, muitas vezes correm por conta, como fez notar Rhese, de uma neurose traumatica tendo por séde não ou não sómente os orgãos perifericos.
Nos ferimentos penetrantes não são raros os sintomas cerebelares, por uma compressão hemorragica no angulo ponto-cerebetar (Rhese, Goldstein, Engelhardt).
E' frequente que o ferimento por arma de fogo se complique de infecção. O prognostico, então, dependerá da virulencia do germen e ainda ide circunstancias determinadas, aliás favoraveis, como seja a compressão produzida por uma hemorragia que venha barrar o campo, ou seja a irritação simplesmente mecan.ica que venha produzir uma rapida infiltração celular, constituindo defesa para uma infecção secundaria (Preyssing).
Outro,sim, Zangue explica a relativa raridade da meningite traumatica pela compressão imediata que a massa encefalica vem exercer sobre a solução de continuidade, impedindo a disseminação da infecção na meninge; ao contrario do que se passaria com a incisão de um abcesso cerebral, provocando ou facilitando a disseminação do fóco, já isolado ao tempo da intervenção.
Em 33 casos de autopsia de meningite por ferimento por arma de fogo, Ghiari pôde demonstrar sómente em dois deles adisseminação da infecção da meninge partindo do ponto do ferimento.
Os sintomas se dividem pois, em sintomas do ouvido, sintomas cerebrais e sintomas gerais.
Como nos grandes traumatismos, o ferido perde imediatamente os sentidos, faties palida, respiração lenta, e a otorragia, que é constante, imediata e, quasi sempre, fulminante provindo da carotida ou do seio cavernoso. As vezes tambem o escoamento, do liquido cefalo-raqueano, o que significa lesão labirintica ou rotura das meninges.
E assim, quando no estado de coma, não sobrevem rapidamente a morte, os primeiros sintomas se atenuam aos poucos e outros vão se denunciando a um exame mais completo. Imediata também é a paralisia do facial, de tipo periférico.
Quando a dilaceração e equimóses das paredes do conduto não impedem a otoscopia, pode-se perceber a direção do projetil ou mesmo a sua presença, ou fragmentos que sejam, alojados nas paredes ósseas ou na caixa.
Se o labirinto foi apenas lesado, a surdez, não completa, regride progressivamente. A prova galvanica, dando-se a reação de ton, significa. a lesão organica do nervo coclear (Alexander).
Como nas fraturas de base por traumas de outra natureza, são frequentes as vertigens, particularmente as de fixação visual na direção da componente rapida do nistagmo, e essa vertigem se reforça pelo deslocamento brusco da cabeça ou do corpo. O exame funcional é quasi sempre prejudicado pela inconveniencia de se submeter o doente ás respectivas provas, como a calorica ou mesmo a rotatoria.
A esses sintomas propriamente do ouvido, se podem juntar os sintomas cerebrais: perda de conhecimento, cefaléa, nauseas, vomitos, paralisias, disturbios troficos e vaso-motores, reflexos, histeria e neurastenia (Alexander).
A elles também podem estar ligados os sintomas óticos, como sejam: a neurite ótica, estase papilar e a atrofia. Um extravasamento sanguineo extradural, pôde provocar disturbios da visão e dos movimentos do globo ocular.
O tratamento dos traumas de ouvido por arma de fogo - diz Alexander - deve ser cirurgicamente o mais moderado possivel. Primeiramente uma bôa drenagem impedindo a propagação do pús; sem com isso dizer que não se deva intervir em bôa oportunidade, apoiando-se de uma radiografia. Nunca protelar até uma complicação endocraniana ou mesmo compressão cerebral.
O projétil superficial, tangente, deve ser removido imediatamente. Quando houver grande destruição óssea deve-se tombem tratar cirurgicamente, proporcionando, assim, larga, drenagem (Allers).
Um projétil penetrante que não esteja provocando sintoma algum, particularmente se estiver alojado em lugar muito dificilmente acessível, aí deve ser deixado. Ao envéz, os que estejam mais facilmente acessíveis devem ser extraídos; porque, como tem sido verificado, ainda que sem aparente reação a bala acaba sendo cercada de uma camada de pús.
Alexander cita um caso de tiro penetrante no cerebro, cuja ferida tinha fechado facilmente, não havendo outro sintam senão a cefaléa que foi a indicação para se intervir. E encontrou-se numa loja de pús um fragmento necrosado de dura mater que havia sido levado pela bala.
Nos casos de comprometimento do ouvido interno a conduta cirurgica é a mesma que para as afecções inflamatorias.
A massa encefalica atingida faz prolapso ou mesmo é arremessada para fóra; tambem isso se dá quando ha edema encefalico - o que é sempre de máu prognostico (Alexander). A parte lesada do encefalo deve ser removida, ainda que isso venha redundar em graves disturbios funcionais.
Quando ha prolapso este deve ser rebatido pelo fechamento da ferida, pela sutura, ou mesmo se necessario, pela plastica da dura mater.
Enfim, Alexander baseando-se na experiencia que ao fim da grande guerra lhe deram 2.500 casos de trauma do ouvido por arma de fogo, entre estes 225 de ferimentos por tiros diretos, estabelece para o tratamento os seguintes princípios
I - franca exposição da dura mater ;
II - remoção de esfacelos ou fragmentos tendentes a necrose, e cuidadosa aspiração de sangue e da secreção da ferida;
III - intervenção cirurgica em tempo, com hospitalização definitiva do paciente, evitando-se qualquer sorte de transporte.
Mesmo diante de uma estatística como a de Alexander e Urbantschitseh, o caso que passamos a relatar se justificaria pelos detalhes interessantes que apresenta em sua sintomatologia inicial e sua evolução.
F. A. F., com 35 anos de idade, domiciliado em Presidente Prudente, servindo-se de um revolver de marca Schmtdt Western, desfechou quasi consecutivamente dois tiros junto ao ouvido direita. Socorrido logo a seguir, ficou no hospital local, onde caiu em estado de choque e assim permaneceu por dois dias, até que foi transportado para esta Capital. Houve profusa otorragia, pelo conduto e pela trompa; nada se podendo adiantar, entretanto, da presença ou não de liquido cefalo-raqueano. Fomos chamados a vê-lo quando já haviam decorrido 18 dias.
Um moço, de compleição regular, tinha o ouvido direito inundado em pús. Infiltração na região pré auricular e paralisia facial completa do mesmo lado, de que o paciente se queixava com insistência, por dificultar-lhe a mastigação dos alimentos, cujo gosto não percebia em absoluto. Sentia dôr intensa, particularmente á noite, no fundo do globo ocular direito; era nítida a paralisia do motor ocular externo.
Só na concha se podiam notar equimoses, e após ligeira limpeza percebia-se a dilaceração da parede postero inferior do conduto, e, ao fim deste, um fragmento de bala tapando quasi inteiramente a caixa timpanica. Leve Infiltração na região retro auricular. Sensibilidade nitida á pressão na fossa e ponta mastoidéas.
Não havia nistagmo; surdez apenas de condução, com Weber lateralisado para o lado direito. Sensibilidadie á pressão do globo ocular direito. Ausencia de rigidez de nuca, de dermografla, de Babinski e de Kernig.
Quéda nítida para o lado direito, certa ataria de movimento, do indicador á ponta do nariz e a marcha quasi impossivel sem apoio. (Sintomas cerebelares post-traumaticos, de simples compressão - Rhese, Engelhardt).
Podia.-se afirmar sobre uma paresia dos quatro ultimos nervos craneanos, embora a nitidez dos sinais respectivos parecesse variar a cada verificação: língua ligeiramente desviada para o lado são; desvio do véo palatino durante a fonação E; salivação abundante; ageustia quasi completa; disfonia com paresia laríngea do lado correspondente; diferença do relevo dos musculos externo cleido mastoldos e trapézio, assim como das escavações supra-claviculares e leve abaixamento do ombro. Sinais estes que desapareceram nos primeiros dias após a intervenção.
Tinham sido feitas duas punções lombares (Dr. Nairo Trench); a primeira francamente hemorragica, sob pressão; a segunda mais clara. A temperatura oscilava entre 37,5 e 38,3.
A radiografia, tambem ja, pedida, assinalava "dois grandes fragmentos metalicos situados na porção media da piramide, o superior ao nível da eminência arcuata e o interior na face externa da piramide em sua porção media, tias vizinhança do seio petroso, junto á fissura petreo-escamosa. Poeira metálica espalhada no corpo da piramide ao longo do seu eixo longitudinal, desde a ponte, até o antro" (Dr. R. de Lima Filho). Radio. n.° 1 e n.° 2.
Como o doente, aos cuidados que estava do Dr. Raul Vieira de Carvalho, já vinha sendo submetido a tratamento anti-infeccioso ,intensivo, !além de analgésicos e opiaceos, indispensaveis para o seu repouso á noite, prepusemos a intervenção cirurgica, com o diagnostico seguinte: ferimento da base do cranio por arma. de fogo, complicada de mastoidite aguda e compressão endocraniana.
Operação (3-VIII-35 - Auxiliar: Dr. Nario Trench -Anestesia com balsoformio) - Trepanação da mastoide com devastação sistemática de todos os grupos celulares. Era do tipo pneumático com grande célula da ponta a mucosa se achava inteiramente degenerada, fungosa. A medida que se aproximava do antro encontravam-se fragmentos metálico de tamanhos diversos. Ao fazermos saltar o muro da logetta, encontramos um estilhaço maior encravado no hipotimpano e parte correspondente ao joelho inferior do facial. Retiramo-lo com alguma dificuldade, por não se querer causar maior destruição ossea. No quadrante antero-superior da caixa, em nível pouco acima da articulação temporo maxilar havia outro fragmento grande bem maior que o primeiro e de fôrma quadrilátera, para cuja remoção foi necessario a trepanação de grande parte da parede anterior do conduto, além da base de apofise zigomática, cujo grupo celular se achava comprometido. Depois' deste tempo era já mais facil prosseguir em busca do, projétil ou fragmento que a radiografia assinalava junto â ponta do rochedo. Orientado-me pelo processo americano (Kopetzky e Almour), penetrei com goiva estreita e fina cureta na arca compreendida entre o orifício tubário, a cóclea e o canal carotidiano, cuja parede posterior tinha sido removida pelo projétil, pois com facilidade tivemos a carotida interna exposta.
Rad. n.º 1
Rad. n.º 2 - Posição de Shüller - lado patologico antes da intervenção.
Penetrando á profundidade de uns seis centímetros, demos com o projétil, que se achava no angulo superior do rochedo, junto á carotida e buraco lassaro, como que impelindo a duramater para dentro da fossa.
Retirado o estilhaço, ao envez de tatear com o estilete, preferimos, à moda de Kopetzky, injectar a lodipina a 20%. Daria aos RX. melhor confirmação do que fora devastado pelo projetil e tendo a mais um papel anti-infeccioso. A radiografia tirada logo após a intervenção mostra que não houve passagem do liquido, a iodipina, para o interior da cavidade craneana- Colocamos um grosso dreno de borracha, que foi retirado progressivamente só a partir do 5.° dia. Substitui-o por um dreno de gaze lodoformado, que se trocava diariamente, dada a abundancia da supuração. Nas quatro semanas seguintes acompanhava-se apenas a granulação da ferida, que se deixou inteiramente aberta. Em varios curativos foram encontrados ainda pequeninos estilhaços, como que emigrando á tona das granulações.
Como já disse, foi este caso circunstanciado de curiosos detalhes. Assim. quanto á sintomatologia, inicial, ao envez da imediata perda dos sentidos, tão constantes nos traumatismos craneanos, - o paciente, depois de desfechado o primeiro tiro; pôde ainda apagar a luz do aposento e dirigir-se para a cama, em que tropeçou num movel caindo ao chão. Enquanto, tateando, procurava a arma, diz ele, percebia perfeitamente o alvoroço dos seus vizinhos de quarto que batiam á porta. Apressou-se por isso em dar o segundo tiro; nada sentindo, diz ele, senão um surdo ruido no cerebro, como que de uma cachoeira. Pôde prestar declarações, ditou, telegramas e conversou com amigos. Só uma hora depois é que caiu em desfalecimento.,Recobrou os sentidos dois dias depois, ainda assim com intermitências mais ou menos longas.
O estilhaço que atingiu a ponta do rochedo através da caixa, poupando a cóclea, canais semicirculares e a carotida, forçosamente, por suas proporções, tinha que lesar o facial, que aliás ia tambem ser atingido por fragmento da segunda bala ao nivel do joelho inferior.
Só depois de sair do hospital teve o doente seria ulceração da cornes, necessitando a tarsorrafia (Dr. Cyro Rezende), já nessa ocasião o paciente entregava-se aos esportes, praticando o remo.
Fez-se longa série de aplicação galvânica, e tratamento de iodo-bismuto; pois o paciente é, a mais, um grande luético.
Em março ultimo fez-se a extirpação do ganglio simpatico cervical estrelado (Dr. Ribeiro Santos, por nós auxiliado). Parece ter havido proveitos logo a seguir: movimentação maior da palpebra e esboço de movimentos na comissura labial. Ultimamente o paciente já pôde, diante do espelho, manter o rosto em atitude simétrica, e provoca movimentos da bochecha, o que não conseguia. Refere tambem a um mais rapido desaparecimento da digeustia de , que ainda tinha reliquat antes desta ultima intervenção.
Uma radiografia tirada nestes ultimos dias mostra nitidamente a poeira metálica espalhada por toda a região temporal, todavia, sem causar a mínima reação. O cliente sente-se bem disposto, tendo voltado aos seus antigos afazeres no comercio. Radiogr. n .O 3.
RESUME
DR MÀTTOS BARRETO - BLESSURES PAR ARME A FEU EN TOUCHANT LA BASE ET LA POINTE DU ROCHER. PETROSITE ET SYNDROME DE COMPRESSION. INTERVENTION AU 2l.° JOUR. GUÉRISON.
L'A. fait premièrement un court abregé dez notions géneralei des blessures de l'oreille par arme à feu, directement applicables au cas. Classification des blessures. Les phenomenes géneraux qui suivent ces blessures: des neuroses et des troubles psychiques; les troubles en denotant lésion ou ébranlement de l'orsille interne, ayant pour siége non seulement les organes peripheriques; les symtomes cérébelleux.
En poursulvant, l'A. s'occupe de I'infection des blessures eraniennes par arme à feu. Après avoír décrit le cadre Initial, ll passe en revue Ice symptomes de l'oreìlle externe, de l'oreille interne, des ner'fs acoustique et vestibulaire; les symptomes cérebraux, cérébelleux et optiques.
Au sujet du traitement, il étudie la conduite chirurgicale, selon que la pénétration soit superficielle ou profonde, avec destruetion oseeuse, et aussi quand il y a atteinte de la masse encéphalique et quand il y a du prolapsus.
L'A. décrit son cas: symptomatologie initiale pas commune. Opération: il y a trouvé trois fragmente du projectile: un, dana l'hYpotympan et se joignant au facial; l'autre sur la base du rocher, Deu en avant de l'articulatioa temporo-maxillare; le troisième, le plus grand, sur i'angle supérieur du rocher, près de la carotide et du trou dechiré. Injection locale de iodipine à 20%. Suite opératoire normal. Persistance de l'áuditkon. Stellectomie pour corriger la paralysie faciale.
Rad. n.º 3 - Posição de Shüller (ampliada) lado patologico 11 meses após a intervenção.