Versão Inglês

Ano:  1944  Vol. 12   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 392 a 400

 

ESQUEMAS DE TÁTICA CIRÚRGICA NAS FISSURAS CONGÊNITAS DA BÔCA (1)

Autor(es): Dr. J. REBELO NETO (2)

Reputamos de primordial importância para o cirurgião plástico o conhecimento profundo de tudo quanto se refere às fissuras congênitas da bôca.

Devemos orientar o melhor dos nossos esforços para apagar os vestígios inestéticos da deformidade, de tão ricas riuances anatômicas, quanto constantes no achincalhe íntimo da personalidade e restaurar as graves anomalias funcionais que lhes são peculiares.
O estudo teórico do problema e o cotejo dos resultados obtidos na prática em doentes operados de 15 anos para cá, nos animam, embora timidamente, a escrever alguma coisa sobre o assunto.

Não vamos argumentar com dados estatísticos mas apontar causas e remédios para sucessos e insucessos.
Antes de prosseguir queremos deixar assinalada a circunstância dêste estudo não, ser definitivo, pois a observação dos casos operados e a tendência natural do nosso espírito é ensaiar sempre, tentando eliminar pontos fracos, em busca da maior segurança possível. '



As diretrizes de uma tática não são arbitrárias nem podem ser calcadas na rigidez imutável de uma determinada escola.

Aqui, mais do que em qualquer outro departamento da cirurgia, deve predominar um espírito de sadio ecletismo.


Antes de enveredar na senda da tática própriamente dita, desejamos apontar alguns fatores fundamentais para o sucesso.

São êles o estado geral do doente, o estado local, a cooperação inteligente da família do enfermo.

A observação direta do doente é necessária, principalmente quando provem de uma localidade distante, maxime se sei tratar de uma criança, pois são muito comuns as enfermidades contraídas durante as viagens. Será desagradável ver surgir um pósoperatório tormentoso causado por uma molestia em cujo período de incubação executamos apressadamente a intervenção cirúrgica, especialmente as que atacam o sistema respiratório.

A bronquite, a tosse sobrevindas depois da operação, são causas de deiscencias.
Os prematuros, os nascidos à termo, porém muito debeis, os convalescentes de doenças demoradas, não toleram bem êsse genero de operação.
As condições locais dizem respeito às infecções bucais e nasais estado dos dentes, presença de adenoidite e amigdalites cronicas, aos operados recentes que devem sofrer pequenos retoques.

Os infectados da bôca e do nariz e cavidades anexas aguardarão um razoavel período de cura. Os dentes cariados, serão obturados ou extraídos. Copem aguardar a cicatrização total dos alveolos para intervir.

As histórias de infecções anteriores das amígdalas e adenóides não contraindicam a operação, a menos que não lhe estejam muito próximas.

Em duas eventualidades apenas tivemos ocasião de retirar as amígdalas no mesmo momento de uma estafilorrafia, sem inconvenientes.

Mesmo em operações impecáveis, não é difícil aparecer uma pequena deiscência. O, cirurgião caprichoso cuidará de proceder à sua oclusão. Os tecidos, macroscópicamente já normalizados, não toleram bem, entretanto os retoques imediatos, os pontos esgarçam com facilidade, a mucosa friável, a mobilização de retalhos facilmente provoca necróses por deficiência circulatória. Há, pois, vantagem em ,esperar uns dois ou três meses, tanto mais considerando a possibilidade dos orifícios diminuírem espontaneamente com o tempo,' conforme a sua situação.

A atitude da família, interposta entre o enfêrmo e o médico, merece cogitações tanto no pré como no pós-operatório

A verdade é que nem sempre as nossas recomendações são, seguidas, de tal maneira, entre nós, o chôro e as exigências das, crianças escravisam os pais e os levam a transgredir os conselhos.

Fiscalizar especialmente o jejum nos casos em que for preciso administrar os anestésicos de base per os e os ingesta no, pós-operatório.

Os esquemas de tática estão subordinados a dois elementos, básicos: a idade do paciente e o tipo da deformidade.

Algumas regras gerais, porém dominam o panorama:

1) A regra inicial é "primum non nocere". Um conhecimento profundo de tôdas as finas estruturas do aparelho da linguagem, sobretudo músculos, nervos, vasos e esqueleto, é indispensável ao eleger uma determinada tática. O livre jogo dos finos músculos do oro-faringe é essencial para uma bôa fonação e só se exercerá em tôda a sua amplitude se forem respeitados e senão estiverem presos pela ganga cicatricial.

Nessa ordem de ideias cabe aqui um comentário sobre a referência entre os dois processos de imobilizar a sutura do palato mole - a sutura em massa de Veau versus tamponamento do espaço parafaringeo, com ou sem secção o do hamulus. Este último corresponde melhor ao princípio anunciado.

2) A restauração cirúrgica tomará como modêlo a constituição anatômica normal da parte, cujos detalhes procurará seguir, na medida do possível. Exemplo: Na queiloplastia deverão. ser lembrados os revestimentos cutâneo e mucoso bem como parco muscular.

3) A execução da plástica em várias sessões ou tempos é vantajoso, às veses indispensável. Ter em mira que o criteriol da extensão dêsse tempo visa obter uma vantagem anatomo-mecanica e uma facilidade para o tempo seguinte, perfeitamente balanceada com a resistência física do paciente.

A vantagem anatomo-mecânica resulta da obliteração parcial da fissura, da aproximação mais íntima das suas margens, maximé quando se intervem em baixa idade. Esta aproximação das margens, que obedece, até certo ponto à uma tendência natural, é secundada, últimamente pela retração cicatricial. O fechamento, da parte caudal, impossível dei ser promovido no primeiro tempo, torna-se então extremamente facilitado, sem recorrer à descolamentos laterais.

A realização do tempo imediato deve ser preparada ao delinear o tempo precedente, de modo a simplifica-lo sob o ponte; de vista técnico.

Exemplo frisante do reverso desta diretriz está na prática condenável de iniciar a reparação pelo tempo exclusivamente labial nas fissuras totais, abandonando para depois o assoalho da narina e o palato.

Basta tentar uma vez o prosseguimento da sutura desta partes, largamente deixadas à sua própria sorte, para nunca mais se repetir a aventura.

Certa vez intervimos num paciente anteriormente operado de uma fissura bilateral total. O cirurgião havia suturado tudo menos o assoalho das narinas. A cada deglutição, os líquido passavam para o nariz, por duas fendas com 12 mm. de comprimento cada uma. A dificuldade técnica de fechar essas pequenas fendas, por via direta foi tal, que preferimos reabrir as fissuras labiais e iniciar a sutura do fundo para a periferia e resuturar o lábio.

Idade do paciente.

Quanto mais se aprofunda a nossa experiência nêsse intressante capítulo da cirurgia plástica, quanto mais cotejamos os resultados foneticos alcançados em operados em viárias idades, mais nos convencemos que a razão está conosco ao defender o conceito do ataque precoce à deformidade, por uma serie de motivos que, por já ter sido expostos em outros trabalhos, não vamos repetir agora.

Exceptuando as fissuras labiais ou do palato mole, cujo pequeno porte não pertuba a mamada, tôdas as outras devem ser operadas logo ao nascer, nas crianças de bom estado geral.

Impõe-se, porém, a divisão em tempos, condizentes com a resistência física do lactante, só devendo ser dado mais um passo quando estiver totalmente refeito do trauma cirúrgico antecedente.

Para as condições de clima e ambiente de S. Paulo, os tipos mais graves são resolvidos, via de regra, em três sessões, a primeira até ao terceiro dia após o nascimento, a segunda aos 12 meses e a última, sobre os defeitos secundários no nariz, etc., na puberdade.

Os tratamentos em idades mais maduras podem ser principiados em qualquer época, comportando prognóstico funcional variável, dependente do tipo ela deformidade, do sucesso das manobras operatórias, da reeducação fonética bem conduzida e prolongada, do estado mental e do maior ou" menor comprometimento congênito dos centros nervosos.

Se entre dois pacientes tratados de tipos identicos de deformidade um consegue articular bem a palavra e o outro não, o motivo reside na presença de uma deficiência dos centros nervosos,. difícil de prever.

Não há dúvida de que essa deficiência muitas vezes existe, nem tão pouco do beneficio exercido sobre os centros da linguagem e vias subsidiárias pelo estímulo brotado desde cedo no aparelho periférico precoce e corretamente restaurado.

Pelos mesmos motivos os dados estatísticos comprobatórios da excelência de uma determinada técnica, só poderão ser julgadas se for estudado para cada indivíduo a cor, ou não de um deficit central.

Tipos de deformidade

Estudaremos a orientação a seguir em indivíduos de tenra idade, recém-nascidos ou lactantes e em adultos.

Lactantes

Fissuras uni-laterais totais, completas ou interrompidas no assoalho da narina. O primeiro tempo abrange o fechamento de cerca da metade anterior do palato duro, assoalho da narina, e estiver congenitalmente unido e lábio. O segundo tempo, cuja oportunidade será ditada pela aproximação das laminas palatinas, abrangerá do ponto terminal da sutura anterior à extremidade da úvula:

O ataque aos defeitos secundários; especialmente do nariz, deixamos para a época da puberdade.

B) Fiz-suras bilaterais totais, completas ou interrompidas no ar,soalho das narinas. Nos recem-nascidos de lábio carnudo, permitindo descolamento amplo e bôa ancoragem dos pontos de segurança, a conduta é a mesma do tipo anterior; repetida no mesmo ato inicial dos dois lados da pré-maxila. O desnudamento do pé do vomer não compromete a vitalidade do esqueleto. Quando o lábio é gracil e pálido, o esporão vomeriano extremamente saliente e as fissuras muito amplas, preferimos fazer a síntese em dois tempos iniciando pelo lado mais lato. Três meses depois a manobra é repetida do lado oposto. A estafilorrafia remata a restauração, sob o mesmo critério do primeiro tipo.

C) As fissuras cantonadas ao palato são deixadas para a idade de um ano, a menos que, pela sua extensão e amplitude deficuiltem a mamada. Nesta circunstância procedemos à gnatoplastia imediata, deixando a parte caudal para a idade de um ano.

D) As fissuras labiais, mono ou bilaterais são oblíteradas, em geral num só tempo, não sendo necessário tocar no esqueleto pré-maxilar.

E) As deiscencias de dois ou três milímetros de diâmetro não são operadas porque tendem à diminuir com o crescimento. As maiores são fechadas cirurgicamente, uma vez bem consolidada a operação original.

F) Os outros tipos de fissuras congênitas da bôca, muito piais raros do que os precedentes, exigem uma tática ditada por um espírito de ecletismo. As pequenas fissuras comissurais, por exemplo, costumamos deixar para depois, da idade de um ano" porque a partir desta idade, a colocação do ponto dei segurança é mais eficiente.

Adultos

Fissuras unilaterais totais completas ou interrompidas no assoalho da parir-ia. Havendo grande afastamento das margens, a condutas é idêntica a dos lactantes, isto é, o fechamento é praticado em dons tempos, com dois ou três meses de intervalo um do outro. Mas se as margens estiverem pouco aproximadas, permitindo sutura sem tensão velamentar, a reconstituição é feita num tempo único.

B) Fissuras bilaterais totais completas ou interrompidas no assoalho da narina. São as formas mais trabalhosas, sobretudo quando há largo distanciamento entre as margens. Costumamos deixar a queiloplastia para o arremate final, procedendo de inicia ao fechamento do terço anterior da abobada, aproveitando a mucosa dos dois lados do vomer para atapetar o diafragma nasobucal pela face nasal. Conseguido êsse intento seguimos dai por diante o processo Dorrance, forrando previamente a fibro-mucosa palatina com enxêrto de Thiersch.

C) As fissuras exclusivas do palato exigem técnicas adaptadas a cada caso, conforme a largura da fenda, a finura dos tecidos marginais, a maior ou menor atrofia da musculatura. Com o pequeno afastamento das margens, basta avivamento, pequeno descolamento marginal e sutura em planos. Se houver alguma tensão, descolamento e tamponamento do espaço para-faringeo.

Nas fendas um pouco mais amplas é preciso anteceder o tamponamento péla secção do hamulus. Aumentando a amplitude da fissura, torna-se necessário assegurar a duplicatura do diafragma descolando a mucosa nasal por via nasal e às vezes a ligadura prévia dos vasos palatinos posteriores, para forçar melhor circulação pelos pedículos extremos, permitindo depois a deslocação do retalho lateral para a linha mediana.

Nas fissuras extremamente largas, com comissura anterior retro-dentária, e de abobada de forma ogival, é indispensável proceder à rafia em dois tempos, promovendo o recuo de Dorrance.

D) As fissuras labiais são suturadas num só tempo, procurando dar, altura normal ao lábio e assegurar, na medida do possível à sua mobilidade.

Nessa forma, assim como nas anteriores, é indispensável combinar a atuação cirúrgica com a correção ortodontica, procurando restabelecer o contorno normal do lábio por meio de peças protéticas inteligentemente concebidas.

E) Os defeitos secundários dos fissurados localisam-se principalmente no nariz. As fissuras monolaterais conduzem o dorso nasal para o lado oposto ao da fissura, combinando com a distorsão do lóbulo. Num só tempo ambos podem ser corregidos, reconduzindo a pirâmide para o seu logar e balanceando o esqueleto alar.

Ns formas bilaterais o dorso é mediano, mas o lóbulo é achatado e o sub-septo muito curto, ditando a conduta preferencial da sua correção: afilamento do lóbulo e dorso, às vezes ressecção cuneiforme das azas e alongamento do septo e subsepto. Em geral preferimos executar êsses grupos de correções quando o esqueleto da face atinge o volume definitivo, para evitar retoques posteriores.


Casos já operados

São muito freqüentes na clínica as correções exigidas por operações anteriores mal ou insuficientemente sucedidas.

Seria difícil abranger, em esquemas, todas as modalidades observadas, tão variadas elas são.

As deformidades que se traduzem por alterações do perfil e que tanto concorrem para agravar a desolação moral dos seus portadores, são passíveis de correção, possuindo hoje o nosso arsenal cirúrgico meios suficientes para apaga-los.

De um modo geral a atenção deve ser orientada para o alinhamento do lábio superior, a situação dos dentes, a forma do nariz, os relêvos do maxilar inferior e mento.

Combinando as operações nasais com o avanço da arcada dentária, reconstituida a elasticidade e mobilidade do lábio, suprindo mesmo suas deficiéncias de tecido à custa de retalhos latero-nasais ou pelo processo de Abbé e atendendo ao relêvo mentoniano, consegue-se resultados apreciáveis.

Quanto aos retoques endo-bucais o problema não comporta soluções tão amplas. Cada caso em espécie desafia a argúcia e habilidade do cirurgião.




(1) Trabalho apresentado ao III Congresso Latino Americano de Cirurgia Plástica em Outubro de 1944 (Santiago).
(2) Membro da Academia Nacional de Medicina. Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa de São Paulo.

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