Ano: 1944 Vol. 12 Ed. 4 - Julho - Outubro - (5º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 297 a 301
O ENXÊRTO PRÉVIO DE MUCOSA BUCAL NO FECHAMENTO DAS GRANDES PERFURAÇÕES DO PALATO DURO (1)
Autor(es): DR. J. REBELO NETO (2)
Resumo:
E' descrita, com pormenores uma técnica destinada a dar maior solidez aos tecidos disponíveis ao lado das perdas de substância de grande porte existentes na abóbada palatina e que vão servir para obliterá-las. Consiste em descolar êsses tecidos laterais numa operação preliminar, forrando-os com o tecido mucoso destacado da face interna da bochecha.
Ao executar o segundo tempo, de fechamento definitivo, tem-se à disposição um espesso retalho epitelizado pelos dois lados.
Divulga um artifício de técnica destinado a facilitar a retenção desses retalhos sôbre o palato duro, pelo emprego de tachas.
As perdas de substância da abóbada palatina causam sérios transtornos aos seus portadores, a maior das quais é a disfonia.
Falam como os fissurados congênitos mas não aprendem, como êstes a evitar a passagem dos alimentos para as fossas nasais.
Isto só o conseguem obliterando constantemente a abertura com um chumaço de algodão.
Além de incômodo, anti-higiênico e mal cheiroso o algodão tem o inconveniente de alargar cada vez mais a abertura, mantendo a mucosa nasal sob constante irritação.
Em rigor poder-se-ia escolher entre o fechamento cirúrgico e o fechamento por meio de uma placa protética. Mas são tais as desvantagens que a prótese apresenta (custo elevado, necessidade de renová-la de tempos em tempos, dificuldade em mantê-la asseiada, comunicando mau cheiro ao hálito, devido ao cúmulo constante de catarro na sua parte superior) que não há a titubear na escolha.
Quando o orifício comunicante é de grandes dimensões, a obliteração operatória apresenta, entretanto, dificuldades. Os tecidos vizinhos, mesmo quando oriundos dá fibro-mucosa palatina, porventura ainda aproveitáveis, só possuem revestimento epitelial de um lado. Descolados e suturados às margens do orifício, a sua face superior voltada para as fossas nasais, terá que cicatrizar por segunda intenção, ameaçando a integridade da sutura, somando ao catarro nasal que, se deposita sôbre a superfície cruenta, o produto da exsudação dessa mesma superfície, durante um período prolongado, até o término da sua epitelização.
Daí o ter-nos ocorrido prover, por meio de enxêrto de mucosa bucal a epitelização dessa superfície cruenta, numa operação preliminar, para sòmente num segundo tempo proceder ao fechamento do orifício.
A pequena desvantagem da dualidade operatória é justificada ainda, por um fator de ordem funcional: quanto mais espêsso o neodiafragma interposto entre as cavídades nasal e bucal, melhor a fonação evitando-se totalmente a tonalidade fanhosa, nasalada, que se observa quando o referido diafragma é muito fino.
Ora, reforçando a espessura dos tecidos de fechamento por mais uma camada epitelial, mediante o enxêrto mucoso, ipso facto conferimos maior contextura ao diafragma, conseguindo melhor, fonação.
Essas ligeiras considerações se casam ao caso clínico observado por nós há alguns meses e que se resume no seguinte:
F.S., branco, brasileiro, com 35 anos, mecânico, residente em S. Paulo, matriculado no nosso Serviço de Cirurgia Plástica da Santa Casa em 6 de dezembro de 1943.
A história pregressa pode ser resumida em poucas palavras: goma sifilítica aparecida no nariz há 10 anos, evoluindo rapidamente em direção da abóbada palatina e perfurando largamente a sua parte central.
Com o tratamento intensivo feito naquela época, obteve a cicatrização, mas não o fechamento do orifício. Desde então, para fazer-se compreendido e para poder alimentar-se, mantem um tampão de algodão arrolhado na perfuração.
O exame local revela a existência de uma perfuração arredondada, com dois centímetros de diâmetro bem no centro do palato duro, doze milímetros para trás do rebordo gingival dos incisivos anteriores. A fibro-mucosa da parte restante guarda boa coloração e espessura. O bordo da perda de substância é arredondado, ligeiramente caloso. Através o orificio (Fig. 1) vêm-se facilmente os cornetos inferiores e septo nasal parcialmente destruido, forrados por uma mucosa rubra.
A voz é dificilmente intelegível, com tonalidade idêntica à dos fissurados congênitos, mas se normalisa imediatamente quando o tampão é colocado.
Tendo o doente se submetido ao tratamento antiluético, comprovado pela reação de Wassermann negativa e à toilete dentária, foi por nós operado no dia 14 de Janeiro dêsse ano.
Anestesia por embebição com neotutocaina a 2%. e infiltração com novocaina a 1%.
Praticamos duas incisões laterais, paralelas ao rebordo do orifício e junto ao colo dos dentes, indo, em profundidade até ao esqueleto. A fibro-mucosa, aderente às lâminas palatinas foi totalmente descolada no espaço compreendido entre a incisão lateral e o bordo fistular, continuando a receber farta irrigação pelas palatinas anterior e posterior.
Da face interna da bochecha esquerda retiramos um fragmento de mucosa de tamanho suficiente para forrar a superfície cruenta dos dois retalhos que acabaram de ser descolados e numa área equivalente à da perda de substância.
A mucosa bucal foi cuidadosamente aberta sobre a superfície cruenta dos retalhos bipediculados palatinos, com a parte epitelizada voltada para o esqueleto.
Alguns pontos marginais com cat-gut cromado atraumático 0000 completaram é terminaram o primeiro tempo.
Quarenta dias depois passamos ao segundo tempo, que consistiu no descolamento total da extremidade anterior dos retalhos duplicados pelo enxêrto de mucosa, então já perfeitamente aderida, avivamento do contorno orificial, sutura dos retalhos entre si por meio de pontos de Donati e sua reaplicação sobre o teto palatino.
Uma palavra sobre a fixação dos retalhos na abóbada palatina.
Passa adesão é difícil, mesmo quando é deixada, para a ancoragem dos pontos, uma estreita faixa marginal de fibro-mucosa.
Há muitos anos vimos empregando um artifício de técnica de grande utilidade em casos similares, inclusive em certas modalidades de fissuras congênitas da abóbada palatina.
Consiste em prender os retalhos sobre o esqueleto da mesma maneira que o desenhista imobiliza o papel de desenho sobre a finesa, isto é, com percevejos.
Quando o tecido é muito espesso, utilizamos uma tacha de tapeceiro, de haste longa e fina e cabeça amarela.
A fixação na abóbada é facilitada por uma haste metálica, cilíndrica de 20 centímetros de comprimento e 6 milímetros de diâmetro, cuja extremidade interna, côncava, apoia sobre a cabeça da tacha e em cuja extremidade externa o auxiliar bate o martelo.
Com um pouco de prática o manejo torna-se fácil podendo-se graduar a introdução do prego o quanto se queira, evitando comprimir em demasia, por causa da hipostase.
Para maior segurança, um fio de sêda grosso é amarrado ao pescoço da tacha ou à ranhura existente na cabeça do percevejo e vem fixar-se sobre a pele da bochecha com esparadrapo. Assim, se por acaso soltar-se, não haverá o risco de ser engulido.
No nosso caso a fina haste atravessou a fibro-mucosa e o enxêrto, uma apenas de cada lado, imobilizando de modo absoluto os tecidos sobre o plano duro esquelético subjacente.
Três dias depois retiramos as pequenas tachas, o que é fácil e indolor bastando exercer tração sobre o fio de segurança.
Uma pequena deiscência na parte central foi resuturada dois meses mais tarde, obtendo êxito integral, como se poderá ver pela inspecção do enfêrmo aqui presente.
A mucosa enxertada na parte nasal do neo-diafragma concorre para humedecer o meio e evitar a formação de crostas secas, sempre de remoção, laboriosa.
FIG. 1 - Perda de substância no centro da abóbada palatina, causada por uma goma sifilítica.
FIG. 2 - Aspecto seis meses depois da alta, tendo obtido fechamento integral com a técnica descrita.
Além disso a sua imobilidade é integral, permitindo uma fonação absolutamente perfeita, isenta de nasalidade.
(1) Com. apresentada à Secção de O. R. L. e Cir. Plástica da Ass. Paulista de Med. em 17 de Agosto de 1944.
(2) Membro da Academia Nacional de Medicina. Chefe da Secção de Cirurgia Plástica da Santa Casa de S. Paulo