Versão Inglês

Ano:  1934  Vol. 2   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 118 a 120

 

Um caso pouco comum de corpo estranho das vias aéreas superiores.

Autor(es): DR. ARNALDO BACELLAR (1)

Mais como curiosidade apresentamos o seguinte caso clinico que, pouco valendo como ensinamento, mais uma vez vem demonstrar que tanto o medico como o especialista devem estar sempre de sobreaviso com as surprezas que a clinica diaria póde lhe trazer.

Em 11-12-33, apresentou-se em meu consultorio trazida pelos pais, a pequena Silvia G., de 15 mêses de idade, residente em Guará. Creança emagrecida, anemiada, intoxicada; respiração dificultósa com tiragem supraesternal; temperatura 37º,5; pulso fraco 110 por minuto; alimentação materna quasi exclusiva.

Relataram os pais que havia um mês mais ou menos, tinha sido atacada de bronco-pneumonia e quasi concomitantemente de desintería, sendo tratada por varios colegas. Da primeira dessas doenças melhorou bastante, o que não sucedeu com a segunda que ainda provocava multiplas evacuações diarias. Desde o começo todos notaram que a creança respirava mal e deglutia com dificuldade; levando-se isso em conta do seu estado. Como esses dois ultimos sintomas se agravassem bastante a ponto da doentinha começar a ter crises de sufocação e não poder mais mamar, o colega que então a tratava pensou em difteria, aplicou-lhe 15.000 u. i. de sôro anti-difterico, e mandou-a a nós para que a examinassemos e continuassemos o tratamento.

O exame da boca, amígdalas e buco-faringe nada revelou. Abaixando porém a língua profundamente até ver a epiglote, notamos abaixo desta uma zona esverdeada, recoberta de um inducto catarral que, de relance, nos deu a impressão nitida de placas de necróse, cousa não muito rara na boca, amígdalas ou faringe de creanças após prolongados periodos de doenças infecciosas ou depauperantes, e que nos fez vaticinar um pessimo futuro para o caso. Pedimos até o concurso de distinto colega bacteriologista, para fazer o exame do material que deveriamos retirar de tais placas.

Com grande surpreza nossa, ao tocá-las com uma pinça verificamos que a sua consistencia era dura e que resvalavam diante do instrumento. Só então veio-nos a idéia de corpo extranho. Retiramos a pinça e introduzimos o dedo indicador direito que tocou um corpo duro, circular, com uma grande abertura central tal como um grande anél e colocado horizontalmente sobre o laringe; introduzimos o dedo por ela e depois de alguns movimentos de lateralidade conseguimos deslocá-lo e retirá-lo. Era um desses grandes ilhóses de cobre que se colocam nas extremidades de lonas e encerados, com 33 mm. no seu diametro maximo, apresentando o aro a largura de 7 mm. e o espaço livre 19 mm. de diametro (fig. em tamanho natural), inteiramente azinhavrado e recoberto de mucosidade.



FIGURA



A pacientinha logo após a intervenção caíu em grande prostração, sendo entregue aos cuidados de competente pediatra aqui residente. A' tarde do mesmo dia a temperatura elevou-se a 40º, mas a respiração já havia melhorado muito e a alimentação se tornado possivel. No dia seguinte o exame do faringe e laringe mostrou apenas uma irritação difusa da mucuósa; deglutição ainda um pouco dificil; respiração bôa; temperatura 37º. Teve alta do meu serviço continuando porém sob os cuidados ainda necessarios do pediatra. Não mais a vimos. Soubemos ha dias, por um colega de Guará, que vai passando bem, completamente restabelecida.

Temos portanto o caso de um corpo extranho volumoso permanecendo na garganta de uma creancinha de 15 mêses quem sabe si durante muito mais de um mês, fáto tanto mais notavel pela desproporção de tamanho entre ele e o faringe de uma creança daquela idade.

Pelo que contam os pais e pelo que os colegas observaram, quer nos parecer que a permanencia de tal corpo extranho, na garganta dessa creança seja um pouco anterior ao inicio da sua doença, e talvez causa eficiente ou coadjuvante do seu aparecimento. A bronco pneumonia se explicaria pela irritação das vias aéreas superiores e penetração na arvore bronquica de material septico devida a perturbação do mecanismo da deglutição causada pela presença de tão extranho hospede; e a desintería seria explicada por uma intoxicação cuprica cronica.

Resta-nos finalmente saber como é que uma creança creada com relativos cuidados sempre vigiada por pagens e parentes; poude achar e engulir sem que ninguem percebesse um objecto tão grosseiro como aquele; sem apresentar nenhum fenomeno agudo que fatalmente deveria atraír a atenção de alguem. São cousas da clinica onde de tudo se encontra.




(1) Oto-rino-laringologista da Santa Casa de Ribeirão Preto

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