Ano: 1939 Vol. 7 Ed. 3 - Maio - Junho - (4º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 255 a 262
IMPERFURAÇÃO CONGÉNITA E BILATERAL DAS NARINAS
Autor(es): DR. F. PRUDENTE DE AQUINO (1)
CLINICA DE OTO-RINO-LARINGOLOGIA E CIRURGICA PLASTICA DA STA. CASA DE MISERICORDIA DE S. PAULO
(SERVIÇO DO DR. SCHMIDT SARMENTO)
O presente trabalho baseia-se num caso que chegou as nossas mãos, enviado da Linha Santos-Juquiá, do núcleo de Alecrim, pelo médico lá residente.
Tratando-se de um caso bastante interessante, despertou entretanto, particularmente, a nossa atenção, a raridade do procésso, conforme teremos ocasião de melhor acentuar durante o transcorrer do trabalho.
Observação: - J. M., com 14 anos - branco - natural de Alecrim - Linha Santos-Juquiá.
QUEIXA: - não podia respirar pelo nariz. A anamnése feita cuidadosamente, pouco obtivemos, pois, apesar dos 14 anos, pouco informou. Conseguimos, por intermédio de sua mãe, alguns dados: desde a mais tenra idade ela já tinha notado um defeito na sua respiração. Particularmente, chamou a sua atenção o fato do menino, não poder alimentar-se direito, pois, dava 3 ou 4 chupadas no seio materno e parecia perder o fôlego (sic).
Dai o fato de precocemente instituir tratamento subsidiário por farinhas, sopas, etc. Esteve dois anos na Escola, porém não conseguio aprender a ler. Quando dorme parece que vae morrer afogado (sic), pois, a respiração forçada pela boca, acarreta roncos, sono agitado, baba nos travesseiros, etc.
Sempre foi trabalhador, porem, quando gripado sofria muito, devido o mau-estar que lhe acarretava o nariz obstruido.
Nos seus antecedentes familiares, encontramos o seguinte: seu pae nem sempre pôde trabalhar, pois, quasi sempre está doente. Bebe diariamente, porem pouco. Sua mãe é forte e teve 11 filhos, dos quaes cinco estão vivos, e seis mortos, logo após o nascimento. Alimentação deficiente, de farinhas, batatas, arroz, e raramente frutas (bananas).
EXAME: RINOSCOPIA ANTERIOR: - o nosso exame constatou o seguinte: - 1 centímetro para dentro de cada narina, um revestimento mucoso obliterando completamente a sua luz.
No lado direito encontramos uma ligeira depressão junto ao soalho que, pensamos fosse um pequeno pertuito e apesar de todos os exames e manobras, verificamos não existir êsse pertuito.
RINOSCOPIA POSTERIOR: - nada obtivemos com êsse exame, pois, a rebeldia do paciente não nos permitiu qualquer conclusão precisa.
BOCA: - lábios permanentemente entre-abertos, deixando ver os dentes. Máus dentes, principalmente os incisivos que se apresentavam gastos, serrilhados, e mal implantados, principalmente os superiores.
FARINGE: - amidalas pequenas, não inflamadas.
OUVIDOS: - nada de anormal.
Internamos o paciente na 1.a M. H. da Santa Casa em 12-12-1938.
"Do exame clínico resaltamos o seguinte: Trata-se de um menino que apesar de ter 14 anos, aparenta 10 anos. Não sabe escrever, porém, responde as perguntas que lhe são feitas. A inspeção geral, chama a atenção o facies, e a disposição da gordura na região pubiana e faces laterais das coxas, lembrando um tipo adiposo-genital. Ausência de pelos pubianos e outros caractéres sexuais secundários. Gânglios inguinais, retrocervicais e epitrocleanos aumentados de volume. Dentes mal implantados e irregulares. Nos diversos aparelhos nada encontramos digno de nota. Aparelho genital insuficientemente desenvolvido. Testículos não descidos completamente na bolsa escrotal. O testículo esquerdo tem o tamanho de uma ervilha e o direito de uma avelã pequena".
Fig. 1
Fig. 2
Radiografia 1
Radiografia 2
Exames de laboratório:
São Paulo, 15-12-1939. (Ass.) Dr. José Magaldi.
FEZES: óvos de ancilóstomo.
REAÇÕES de Wassermann e Kahn (sem reativação) positivas (+).
EVOLUÇÃO: - Instituímos imediatamente um tratamento de fundo anti-Luético, e um tratamento geral por extratos hepático, esplênico, etc.
Com auxilio do Dr. Paulo Toledo, realizamos várias chapas.
A 1.a Chapa apenas verificamos se havia qualquer cousa para o lado dos seios maxilares.
A 2.a chapa verificamos o seguinte:
A altura de obstrução externa: (colocamos em cada narina um algodão embebido em iodipina).
Na 3.a chapa verificamos muito bem a obstrução interna do nariz. Realizamos da seguinte maneira esta chapa: o doente em decubito dorsal e a cabeça em extensão forçada, injetamos com pressão por meio de uma sonda colocada no naso-faringe, a solução de iodipina (30 cc.) e imediatamente foi batida a chapa.
As outras chapas demonstram o que foi acima explicado, sómente o paciente em outras posições; frente, perfil, etc.
Perfeitamente identificada a obstrução nasal e com o paciente submetido a 15 dias de preparação, resolvemos intervir.
INTERVENÇÃO: - anestesia local, imbibição por néotutocaina-adrenalina e infiltração por novocaina e 1%.
Penetramos com o bisturi justa-septal até encontrar o espaço livre, isto é, a luz da narina de cada lado.
Verificamos então o seguinte: do lado direito um operculo de 1/2 centímetro, mais ou menos, e do lado esquerdo, de 1 centímetro mais ou menos.
Seccionando de alto a baixo, introduzimos nesse espaço tampões de gaze iodoformada que permaneceram por três dias. Após retirada das gazes introduzimos um pequeno fragmento de celulóide em cada narina e que aí permaneceu por uma semana. Iniciamos então a dilatação progressiva das narinas com tubos de borracha cada vez mais grossos, segundo preconisa Rebelo Neto.
Assim procedemos durante dois meses, e o resultado obtido foi a reconstituição perfeita das narinas, segundo verificaram os presentes a Secção de Oto-Rino-Laringologia em 17 de fevereiro do corrente ano.
Tratando-se de um caso relacionado com a cirurgia plástica, pequena foi a nossa contribuição.
Procuramos estudar o caso do ponto de vista embriológico, pois é o lado da questão que mais poderia nos interessar. Vejamos, resumidamente, a formação da face e em particular das fossas nasais com seus elementos: septo e cornetos. Em embriões de 8 mm., já se esboçam os futuros pontos de reparo para a formação da face. Os processos frontais, esboçam os rudimentos dos hemisférios cerebrais. Orientado transversalmente, encontramos o sulco supra-nasal que delimita inferiormente a area triangular.
Mais caudalmente encontramos a area infra-nasal separada por um relevo (esboço da ponta do nariz) da area triangular.
Ao lado da area infra-nasal encontramos os processos globulares e maxilares. Mais abaixo a rima bucal bastante alargada. Conforme vemos pelas figuras anexas (n.° 2), operam-se as seguintes modificações:
O dorso do nariz se esboça breve. A area triangular que era larga e achatada, pelo estreitamento progressivo, se eleva acima do nivel da face.
Esboçada a ponta do nariz, pelo alargamento da area triangular, esboça-se o dorso do nariz. A formação do dorso nasal condiciona o deslocamento para baixo das narinas que eram orientadas para frente.
Este processo condiciona a aproximação das duas metades da area infra-nasal e determina mesmo a fusão. Na sua porção superior constitue o septo nasal anterior e a sua porção inferior o filtro do lábio superior.
Os processos nasais laterais, formam as paredes e as asas do nariz. O epitélio que reveste as narinas prolifera intensamente.
A estensa fenda bucal tende a diminuir cada vez mais. Esboçada desta maneira a face, chama-nos logo a atenção o nariz, conforme vemos pela figura n.° 3, curto e achatado, caracteres êsses de vida fetal e conserva com ligeira modificação no nascimento e infância, e na puberdade adquire uma fôrma individualmente característica.
A formação da face definitiva, depende ainda do crescimento dos ossos e cartilagens, e da ampliação das cavidades acessórias do nariz.
Vejamos agora a formação do septo nasal:
A cavidade nasal primitiva sómente se separa em duas fossas, quando as fossetas olfativas se alongam sob a fôrma de sacos. A massa de tecido mesenquinal interposta entre os dois sacos olfativos, constitue o l.° tabique de divisão, por êsse motivo denominado o septo primitivo.
O segmento anterior do septo conforme já citamos na formação do nariz externo, irá esboçando-se quando as duas metades da área infra-nasal se tiverem fundido em sua porção mais alta, numa peça única.
O segmento posterior do septo nasal fórma-se a custa do mesenquima que desce da base do crâneo e vem aderir ao longo da linha de sutura na face superior das lâminas palatinas.
O epitélio que reveste as narinas prolifera intensamente e acaba por obliterar completamente os dois orifícios, desde o fim do 2.° mes até ao 5.° mes da vida intra-uterina.
A figura n.o 4 nos dá uma idéia na proliferação do epitélio:
Conforme vêmos na fig. n.° 4, o órgão de Jacobson ou órgão vomero-nasal (existe nos mamíferos macrosmáticos) se esboça juntamente com os cornetos, porem, no 5.° mês de vida intrauterina em diante, involue, seguindo os cornetos a sua evolução. Os cornetos se esboçam precocemente, e a superfície das fossas nasais tende cada vez mais a se ampliar.
Precocemente, já vamos encontrar nas paredes das fossas nasais, espessamentos lineares de epitélio e mais tarde sulcos (Esboços dos meatos) os quais septam o tecido mesenquimal subjacente.
Os cornetos são pois, formações mesenquimais revestidas por epitelio.
Precisamos distinguir dois tipos de cornetos: Principais e acessórios.
Os principais nascem das paredes das fossas nasais e os acessórios nascem entre os principais ou sobre eles.
Nesta ocasião as fossas nasais apresentam conformação bastante complexa, como mais ou menos vemos na figura n.° 6:
Fig. 3
Fig. 4
Fig. 5
Fig. 6
O l.° corneto que aparece é o maxilo-turbinal transitoriamente duplice. Será o futuro corneto nasal inferior, limitado desde o inicio, por 2 sulcos que correspondem aos meatos médio e inferior.
Pouco depois, ao nível da passagem da parede medial para a parede lateral das fossas nasais, se esboça o etmo-turbinal l.°, que se transformará no corneto médio, com excepção de um pequeno segmento anterior que será mais tarde absorvido pela parede lateral.
O corneto superior provem de outro relevo etmo-turbinal 2.°, desenvolvido na parte mais alta da parede medial.
Outros etmo-turbinais podem se formar, projetando-se de trás para diante e de baixo para cima, porém, se deslocam para as paredes laterais para seguirem sua evolução.
Na superfície dos cornetos: médio e superior se desenvolvem cornetos acessórios.
O desdobramento do corneto superior fôrma: corneto nasal supremo e mais atrás a bula etmoidalis, considerada como o maior dos cornetos acessórios.
No meato médio esboça-se o infundíbulo que dorsalmente fôrma 3 cornetos acessórios. Dois dos cornetos infundibulares fundem-se a bula etmoidalis.
Em época mais adiantada muitas das formações acima descritas, perdem sua individualidade.
Com a formação das cavidades para-nasais completa a face a sua formação.
Completas estas noções de embriologia, faremos algumas considerações ao nosso caso:
Denominamos imperfuração congênita a bilateral das narinas.
Encontramos elementos que nos induziram a fazer este diagnóstico, assim como encontramos elementos contra.
Favoraveis ao nosso diagnóstico temos na anamnése: a mãe relata a dificuldade por ela notada desde os primeiros dias de vida do paciente para a sua alimentação (não podia chupar o seu seio). Não encontramos qualquer afecção para o lado do nariz que justificasse a oclusão total das narinas. A mãe nega qualquer infecção.
Trata-se de um caso de heredo-lues conforme observamos pelo resultado do Wassermann e Kahn, feito sem reativação. O tratamento de fundo determinou melhoria consideravel para o lado do estado geral do paciente que engordou e se apresenta atualmente bem disposto.
Seu pai não é forte, bebe, e sua mãe teve seis filhos que morreram logo nos primeiros dias e meses de vida.
Ao par do que relatamos, o clínico encontrou hipertrofias ganglionares várias, esboço de um tipo adiposo-genital com atrofia testiculares.
Naturalmente, êsses distúrbios endócrinos vem ainda reforçar o nosso diagnóstico.
Conforme assinalamos no nosso estudo embriológico, a proliferação do mesênquima preenche toda a luz das narinas desde o 2.° até o 5.° mês de vida intra-uterina, portanto em caso de heredo-lues ou portadores de taras, por mecanismo ainda por nós desconhecido, a luz das cavidades nasais pode perfeitamente permanecer em oclusão, conforme temos a impressão que se deu no nosso caso.
Fischel diz textualmente: desde o 4.° mês de vida intrauterina se manifestam sob a dependência de fatores hereditários, diversas diferenças individuais.
Fatores contrários ao nosso diagnóstico temos: o aspécto do tecido que obturava as narinas, esboçava um aspécto fibroso, o que fala em favor de uma sinequia que se estabeleceu posteriormente.
O mesênquima em sua evolução pôde perfeitamente assumir as mais variadas transformações, e naturalmente no nosso caso permaneceu em um tecido francamente fibroso.
Outro fato que absolutamente não podemos desprezar é a raridade destas imperfurações congênitas bilaterais.
William relata 6 casos na literatura que procurou em exaustivo trabalho de consultas.
Foram observados em dois irmãos heredo-sifilíticos, uma interessante observacão.
Blair, Frattasi e outros autores colecionaram grande número de casos de malformações congênitas das narinas, associadas a defeitos dos lábios.
Rebelo Neto relata dois casos de atresia congênita, em um havia pertuito em ambas as narinas. No outro, apenas um orificio púntiforme.
Castilho Marcondes estudou essa questão, e verificamos a identidade do seu tratamento com o nosso, laminárias e tubos de borracha, ao passo que nós usamos celulóide e tubos de borracha.
Portanto, o que mais nos desorientou foi a raridade da observação, pois, apesar de termos percorrido pequena literatura, toda ela nos informou ser raríssima a observação em questão.
Quanto ao tratamento usado por nós é conhecido desde a mais alta antiguidade a rebeldia e a dificuldade de se dilatarem as atresias nasais, pois a tendência para estreitar cada vez mais o conduto é enorme.
Bloch e outros autores praticavam com resultado a dilatação com tubos de borracha.
Rebelo Neto entre nós, obteve brilhantes resultados.
As vantagens de se corrigir precocemente as imperfurações nasais, não insistimos, pois, por todos é facil de imaginar uma respiração obrigatoriamente bucal, dia e noite, o sofrimento indizivel que isto acarreta e não insistimos sobre a repercussão para o lado geral do organismo (em particular o pulmão), que num futuro muito próximo se manifestaria em toda a sua plenitude.
ZUSAMMENFASSUNG
Es handelt sich um einen 14jaehrigen Knaben mit Imperforatio congenita beider Nasenoeffnungen. Erblich bedingte Lues und adipo-genitaler Typ mit innersekretorischen Stoerungen. Sowohl die Wassermann'sche wie die Kahn'sche Reaktion waren positiv (+). Die Roentgenaufnahme mit einem Kontrastmittel zeigte die Hoehe des Nasenverschlusses nach innen und aussen. Der chirurgische Eingriff fand unter Lokalanaesthesie statt: mit Hilfe des Operationsmessers wurde der Deckel herausgeschnitten, welcher beide Nasenoeffnungen verschloss; diese wurden tamponniert und mit einer kleinen Zelluloidschicht ueberzogen. Waehrend drei Monaten wurde die progressive Dehnung mit Gummiroehren unternommen, bis die Nasenoeffnungen vollkommen wiederhergestellt waren.
Anschliessend wird der embriologische Bildungsprozess des Gesichtes und der Nase (Nasenscheidewand und Muscheln) beschrieben. Es wird dann der Vertopfungsvorgang beider Nasenoeffnungen dargestellt, welcher sich wahrscheinlich zwischen dem 2. und 5. intrauterinen Lebensmonat abgespielt hat.
Es werden die Faelle besprochen, die in der aufgefundenen Literatur verzeichnet sind. Die Diagnose wird an Hand der Angaben des Pazienten eroertert und schliesslich einwandfrei festgestellt als: IMPERFORATIO CONGENITA BEIDER NASENOEFFNUNGEN.
BIBLIOGRAFIA
CASTILHO MARCONDES - "Deformações e obstrução do nariz"- Brasil Médico, 1917, volume 31, pagina 220.
FRATTASI. G. R. - "Oclusione congenite complete e bilaterale delle narici", Oto- Rino-Laringologia, 1933, volume 3, pagina 521.
REBELO NETO - "Atresia das narinas", Revista Oto-Laringológica de S. Paulo, 1937, volume 5, pagina 259 a 266.
FISCHEL-Alfred. - "Entwicklung des Menschen"- 1929, pag. 495 a 529.
LORDY C., ÓRIA J, AQUINO J. - Embriologia humana e comparada. (Onto e Teratogenese) a sair em 1939 - 2.a Parte - Cap. 8.º, pag. 393 a 406.
A. LATARGET - Traité d'Anatomie Humaine - 8.° Edição - 1.° tomo, 1928, pag. 136 a 158.
CHIARUGI - GIULIO - Anatomia Dell'Uomo - Vol. 3.ª, pag, 8 a 55.
(1) Adjunto da Clínica