Ano: 1939 Vol. 7 Ed. 5 - Setembro - Outubro - (5º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 399 a 406
TROMBO-FLEBITE PRIMARIA DO GOLFO DA JUGULAR
Autor(es): GUEDES DE MÉLO FILHO (1)
Ha duas variedades de trombose otogênica do golfo da veia jugular: a primária, de ocorrência relativamente rara, provocada por infecção direta através do soalho da caixa timpanica; e a secundária, por propagação da trombose do seio sigmóide. Êste último segmento venoso pode, por sua vez, ser atingido secundariamente por extensão do trombo primitivamente formado na cúpola da jugular.
E reconhecida, e facilmente compreensível, a maior gravidade dos processos infecciosos que se localizem, originária ou secundariamente, na região do bulbo. Na esatística de Mackenzie, relativa a vinte anos de atividade no Hospital de Edinburgh, a porcentagem de curas na trombose isolada do seio lateral alcança a 63 %, ao passo que não ultrapassa de 10%, em casos de comprometimento do golfo.
Foi Mac-Kernon o primeiro a descrever, em 1905, a trombose primitiva do bulbo consecutivo a otite média aguda. Suas observações foram confirmadas, no ano imediato, por Potts. De então para cá, a literatura tem registrado casos esparsos, quasi todos referentes a crianças ou adolescentes, sendo reputada excepcional a verificação em adultos (observações de Wieder e Bates, Fraser, Uffenorde, Dietenfass, Klestadt, Fremel). Algumas estatísticas recentes, colhidas em serviços especializados de grande frequência, mostram a raridade da T.P.G., cujo diagnóstico preoperatório e sobrevida constituiriam, por seu turno, excepção. Sol. Malis, ao apresentar, em 1933, um caso feliz, refere que em oito anos, no Manhattan Hospital, assim como em seis anos, no Los Angeles General Hospital, não fôra assinalada nenhuma observação.
Na mesma época, Maybaum e Goldmann, especialistas do Mount Sinai Hospital, fazem comentários a respeito de vinte casos, o que representa, provavelmente, a maior estatística pessoal sôbre o assunto. Impressionados pela constância e semelhança dos sintomas clínicos e otológicos, assim como das verificações cirúrgicas, Maybaum e Goldmann consideram que esta forma de T. F., cuja existência seria discutível para alguns autores, apresenta quadro característico e constitua entidade clínica definida. Acrescentam os otologistas norte-americanos que tais casos são vistos, com mais frequência, pelos pediatras e clínicos, porquanto os comemorativos, respeito a otite causal, podem não ser mencionados, por imprecisos e, aparentemente, sem importância.
Ha um fator anatômico relevante na gênese da T.F.P. e que explica, outrossim, a sua maior ocorrência na idade infantil: o adelgaçamento do soalho da caixa timpânica, reduzido, às vezes,
a tênue lâmina. Essa conformação depende do grau de ossificação do soalho, assim como do desenvolvimento e da tortuosidade do seio sigmóide. O processo de ossificação se faz à custa de um ponto correspondente à parte mediana do anel timpânico (Testut) e começa no 5.° mês da vida intra-uterina para se completar no decurso dos cinco primeiros anos de existência. Vários fatores, entretanto, podem obstá-lo, de modo a manter-se o estado membranoso, ou semi-membranoso, da parede jugular da caixa até a idade de 7 a 10 anos. Nesses casos, a intimidade das relações entre a mucosa da caixa e o golfo é eminentemente favorável ao aparecimento da T.F. Independente do atraso da ossificação, pode haver relação direta, ou quasi direta, entre as duas estruturas - mucosa e venosa - quando o seio sigmóide se apresente muito encurvado e volumoso (Stenger, Juergens, Macewen). Tal disposição corresponde a desenvolvimento e calibre mais pronunciados do bulbo, o qual pode recalcar fortemente a parede óssea supra-jacente e reduzí-la a fina lâmina, cujas lacunas tornam virtual a separação entre a veia e o recesso hipo-timpânico. Nessas condições, o bulbo proemina no interior da caixa, desprotegido em parte da lâmina óssea (Kërner), o que explica a possibilidade, raramente verificada, de hemorragias abundantes consecutivas à lesão direta do vaso durante a paracentese. A anomalia anatómica se traduziria pelo aparecimento de reflexo azulado, em forma de meia-lua, no quadrante póstero-inferior do tímpano (Testut), de contorno superior nítido, passível de aumento pela compressão digital da jugular, não influenciada, entretanto, pela mobilização do tímpano com o espéculo de Siegle (Slobodnik).
Examinando 449 crânios, verificou Körner que em 58 % a fossa jugular era mais ampla e funda à direita; em 24,3 % à esquerda e em 16,9 % igual dos dois lados. A presença de deiscências foi registrada em 30 casos (6,6% ), dos quais 22 também à direita. Êsses resultados confirmam mais uma vez a noção do maior desenvolvimento do seio lateral e do golfo do lado direito, môrmente no braquicéfalos (Macewen).
No adulto, o soalho da caixa é representado por osso relativamente espesso. A infecção de algumas células, frequentemente existentes na espessura da parede óssea, (Testut, Körner) explicaria a lesão primária do segmento venoso do bulbo, tão poucas vezes observada nessa fase da vida. Lembra Collet que o golfo, devido à sua forma em ampôla, apresenta condições favoráveis à diminuíção da velocidade da corrente sanguínea e, consequentemente, ao aparecimento de um trombo por infecção da vizinhança.
O desenvolvimento rudimentar, ou melhor, a ausência de cavidades celulares na apofise-mastóidea, o que é comum na idade infantil, constitue elemento predisponente à T.P.G.
A infecção direta, devida a presença de deiscências (Buerkner, Brock, Brehm), ou o comprometimento da camada óssea interposta entre o golfo e o recesso hipotimpânico, representam o mecanismo patogênico mais frequente, de acôrdo com as observações necroscópicas e histo-patológicas. Pode, entretanto, o processo infeccioso se propagar por intermédio das veias que, através de minúsculos orifícios ósseos da parede inferior da caixa, vão ter ao bulbo da jugular (Wittmaack, Behm, Grünert).
Ao traçarem o estudo de conjunto da trombose primitiva do golfo, Maybaum e Goldmann encarecem o valor do diagnóstico precoce e a necessidade do ato cirúrgico imediato, susceptível de modificar favoravelmente o evolver sempre severo da afecção. Reconhecem, no entanto, as dificuldades de que se revestem alguns casos, cujo esclarecimento exige o concurso do otologista, do pediatra ou clínico e do laboratório.
São os seguintes os elementos primordiais de diagnóstico:
a) história de otite média discreta, aguda ou sub-aguda, principalmente em crianças, entre 7 e 14 anos;
b) ligeiras alterações timpânicas, quasi sempre do tipo inflamatório regressivo, conservados os pontos de referência e, muita vez, sem perfuração da membrana;
c) integridade da mastóide;
d) temperatura elevada, de tipo intermitente, acompanhada de calafrios, ou, então, contínua, como na pneumonia;
e) modificações precoces do fundo-do-olho;
f) inexistência de outras causas de infecção geral, particularmente de pneumonia, amigdalite, pielo-nefrite e erisipela.
A confirmação do diagnóstico se estabelece pela positividade da hemocultura (estreptococo hemolítico em quasi todos os casos) e pelo quadro da anemia secundária progressiva.
A-pesar-das relações de proximidade entre o golfo e os nervos que passam pelo orifício lacero-posterior, é excepcional a observação de sintomas patológicos na esfera dos IX, X e XI pares cranianos (Haymann, Hormaeche).
Muitos autores admitem que o diagnóstico é, via-de-regra, muito difícil e só pode ser firmado durante o ato operatório, ou depois dêste, por exclusão (Fremel, Jansen, Hinojar, Uffenorde, Mackenzie). Discorda Kopetzky dessa opinião e afirma que poude firmar o diagnóstico prévio, nos casos por êle operados, valendo-se dos seguintes sinais:
existência de septicemia e de anemia secundária;
otite média;
normalidade da mastóide.
Ésse último sinal negativo, assinalado como fundamental desde as observações de Mac-Kernon, é sempre ressaltado nas observações dos autores norte-americanos (Almour, Sol. Malis, Maybaum e Goldmann, Ersner e Myers, Dietenfass). Acentuam Hinojar e Pons que não lia sinais clínicos, nem radiográficos, de mastóidite. Em todos os 20 casos de Maybaum e Goldmann, a apófise estava indemne de lesões. Caberia aqui dizer, adaptando a frase de Lermoyez, que "a infecção lambe a caixa e morde o golfo".
No que tange à otite média, os seus caracteres, a-pesar-de discretos, devem revelar a atividade do processo inflamatório, subjetiva e objetivamente. A otalgia, frequentemente seguida de escoamento de secreção, deve integrar o quadro clínico, o que, de certo modo, vem precisar e esclarecer, senão modificar, as idéias expostas a respeito no estudo de Maybaum e Goldmann. E' o que se deduz da discussão durante o Symposium realizado em 1936, na secção de Otologia da Academia de New York, quando Karelitz mostrou o valor das modificações de colorido do tímpano como meio diagnóstico da trombo-flebite retrógrada do golfo, consecutiva a infecções faríngeas ou cervicais. Tais alterações oferecem um tipo peculiar, pois não se acompanham de dores, nem de corrimento, mesmo nos casos em que a paracentese foi praticada. Rosen, Maybaum, Kaplan, Goldmann e Friesner confirmaram as interessantes observações de Karelitz, merecedoras de atenção no diagnóstico diferencial entre a trombose primária e a retrógrada do golfo. É efetivamente, aceitável a sugestão de Karelitz de que alguns dos casos, tidos como T.P.G., nos quais as alterações timpânicas eram insignificantes, pudessem entrar na categoria dos fatos clínicos por êle observados. Os sinais otoscópicos verificados por aquele autor não se filiam a um processo inflamatório da orelha média, mas traduzem a hiperemia passiva explicável pelas relações entre as veias da caixa e o bulbo (Testut, Grünert) e representam uma consequência da tromose do golfo. Eles permitem ao observador atento a noção da extensão do processo infeccioso para o golfo e o seio sigmóide. No caso de T.P.G., as modificações do tímpano se relacionam propriamente a otite, aguda ou sub-aguda, e constituem a causa, e não o efeito, da obliteração do vaso.
O caso que passamos resumidamente a relatar só foi diagnosticado durante o ato operatório, a-pesar-de nos ter despertado atenção o quadro otoscópico especial apresentado pelo doentinho, presa então de grave estado infeccioso.
O. V., 9 anos, procura o nosso serviço, no Instituto Penido Burnier, em 20-2-1937 (ficha 27.044), queixando-se de que ha 12 dias, após otalgia à D., tivera pequeno corrimento dêsse lado, acompanhado de febre muito alta. Nas últimas 24 horas, o seu estado geral se agravara sensivelmente e O. V. acusava intensa cefaléia.
Exame - Criança abatida, profundamente intoxicada. Temperatura: 40°, pulso 150. Cabeça em leve rotação para a esquerda. Infiltração dolorosa ao nivel de região retro-maxilar e parte alta do E. C. Mastóideo. Otoscopia - secreção purulenta escassa no fundo do conduto; botão inflamatório no soalho, junto ao tímpano, o qual oferece aspecto normal. Submetido a exame pre-operatório, O. V. é internado e operado no mesmo dia, sob anestesia geral.
Intervenção - (20-2-37) - Operador: Guedes de Mélo F.°. Auxiliar: Gabriel Porto. Incisão sôbre o sulco R. A. e afastamento do periósteo. Aos primeiros golpes de goiva, exposição da dura-mater. Logo verificamos que a apófise estava reduzida a uma lâmina de muito pouca espessura, sem células, em toda a sua extensão. Existia, apenas, o antro, constituído por pequena célula que conseguimos abrir trepanando exígua porção óssea adjacente ao ângulo póstero-superior do conduto. O seio sigmóide apresentava coloração avermelhada-escura, estava muito procidente e tenso. Alargada a trepanação óssea, verificamos batimentos na porção vizinha ao golfo. A exploração dêsse ponto, por meio de uma espátula, que exerce compressão, dá saída a regular quantidade de pús, provindo da parte inferior. Com a pinça-goiva, expomos a porção superior do seio sigmóide, que apresenta colorido azulado. A punção no seio é negativa, assim como na direção do golfo. Suspeitando da existência de pús, praticamos pequena incisão na parte inferior do seio e verificamos que está totalmente preenchido por trombo de aspecto não infectado. Gaze iodoformada na zona vizinha ao golfo no antro. Sutura parcial da ferida operatória.
De 21-2 a 1-3, foram feitas seis filacto-transfusões (inj. prévia, no doador, de Propidon) ; duas ampôlas, diariamente, de Prontosil, usado também por via bucal. A hemocultura foi positiva para estreptococo (Monteiro Sales). O exame oftalmológico (Lech Jor.) revelou turgescência das veias do olho esquerdo, sem pulso venoso. Olho direito normal. O estado geral do doentinho apresentou melhoras desde a operação, embora a temperatura ainda se mantivesse alta nos três primeiros dias e houvesse um calafrio na madrugada de 22. Depois de uma pausa de 48 horas, houve nova ascenção a 39°,6 caindo a temperatura a 38º no dia imediato, para depois se manter em torno de 37º durante alguns dias. (V. gráfico). A melhoria do estado geral se acentuou rapidamente, permitindo que O. V. deixasse o hospital, em excelentes condições, no dia 10 de Março. O botão fistuloso existente no soalho, junto ao tímpano, em pouco tempo desapareceu e a cavidade operatória, com os progressos das condições gerais e a medicação reconstituinte, cicatrizou normalmente, tendo o doentinho alta curado pouco depois de um mês.
Gráfico
Justifica-se, no nosso caso, o diagnóstico de T.F.P.G., surpreendida já em sua fase de propagação ao seio sigmóide, diante do quadro clínico apresentado e que assim pode ser resumido: comemorativos de otite média aguda recente em criança de 9 anos (lado direito) ; otite pouco intensa em contraste com o severo acometimento do estado geral e hemocultura positiva para estreptococo; fístula no soalho do conduto, em sua porção justa-timpânica; tímpano de bom aspecto; perturbações circulatórias no fundo-do-olho homólogo; infiltração ao nível da parte superior do E.C. Mastóideo e da zona retro-mandibular (Collet, Sol. Malis) ; mastóide apneumática, reduzida a insignificante lâmina de aspecto normal em todos os pontos; coleção purulenta vinda da profundidade, após compressão, com a espátula, da parte extrema e inferior do seio sigmóide.
O estado precário em que se encontrava o doente poude ser removido por uma intervenção conservadora e pela terapêutica complementar, que consistiu, essencialmente, no emprêgo do Prontosil, por vias parenteral e oral, e nas transfusões repetidas de sangue, com injeção prévia, no doador, de Propidon.
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