Versão Inglês

Ano:  1933  Vol. 1   Ed. 4  - Julho - Agosto - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 275 a 280

 

DE ALGUMAS LOCALISAÇÕES RARAS DAS MIÍASES

Autor(es): DR. PAULO MANGABEIRA - ALBERNAZ (1)

As miíases ainda não, foram até hoje classificadas de modo satisfátorio. Deixando, pois, de parte, classificações que não preenchem " in totum" os fins almejados, e encarando a afecção sob h ponto de vista clínico, acho que, entre nós, ela podia ser scindida em dois grandes grupos:

1.o - A miiase cavitária, produzida por larvas de parasitismo facultativo, larvas estas quási sempre depositadas nas fossas nasais e no ouvido. Para que os agentes aí se localizem, é condição "sine qua" a pré-existência de um processo inflamatória supurado, servindo o odor da secreção de chamariz ás moscas. Fm nosso meio, êsse tipo de miíase é causado quási exclusivamente pelas espécies Cochliomyia maeellaria (Fabrício,, 1794) e Sarcophaga cornaria (Linêo, 1758).

2.o - A miíase impropriamente chamada cutânea, determinada por larvas de parasitismo obrigatório (Brumpt), presentes, só em casos excepcionais, nas regiões de nossa especialidade, independentemente da existencia de qualquer infecção. É causado êste tipo pela Dermatobia cyaniventris (Macquart, 1840). A larva desta mosca é conhecida vulgarmente pelo nome de berne, nome êste tambem dado ao insecto adulto. Sóbre tal fáto, isto é, sôbre ser o berne a larva da Dermatobia, não paira a menor dúvida. No entanto, Seiffert, no Tratado de Denker e Kahler, ainda admite a absurda hipótese da "talvez tambem ser a chamada mosca berne do Brasil a Lucilia macellaria, Fabrícim, o que é um cochilo inexplicável.

No primeiro tipo, quási sempre a mosca põe os ovas directamente nas cavidades naturais. No segundo, ela os põe sôbre outros insectos. Segura-os, faz a postura sôbre as paredes laterais do abdome, e solta-os. Os ovos, prêsos aos vectores, aí permanecem até que as larvas encontrem oportunidade de passa-los ao hospedeiro. Chegando ao contacta da péle ou das mucosas, abandonam elas rapidamente o ovo, fazem um percurso de um, centímetro ou mais, á procura de um: ponto para a penetração. Esta se faz em geral por um póro, que a larva dilata para ocupar a cavidade. O conhecimento da biologia da mosca do berne deve-se a Arthur Neiva e J. Florêncio Gomes, que esclareceram definitivamente grande numero de dúvidas a respeita da Dermatobia.

Uma vez admitida esta classificação, esquemática das miíases brasileiras, vejamos os casos que servem de motivo a êste estudo.

Os dois primeiros referem-se a miíases do primeiro grupo.

Primeira observação: - (resumida) - Ana M. S., com 28 anos, branca, solteira, residente em Monte-Mór, deu entrada a 27 de outubro de 1932 no Hospital da Santa Casa, indo ocupar um leito na 8.o Enfermaria (Clínica O-R-Laringológica). Queixava-se de violentas dôres de dentes, e de estar com larvas de moscas na cavidade bucal. Narra que a 21 de outubro, quando, em casa, entregue a, afazeres domésticos, teve de súbito um ataque, perdendo os sentidos. Ao tornar a si nada sentiu de anormal, mas, no dia seguinte, acordou com dôres de dente de violenta intolerável. Com um espelho pôde vêr que, em redor de alguns dentes cariados, havia várias larvas de mosca, motivo pelo qual veio em procura da Santa Casa.

Ao exame dou com algumas larvas - umas 8 a 12, mais ou menos nos alvéolos dentários, cujos órgãos se achavam reduzidos ás raizes. O fóco principal, onde elas se achavam mesmo amontoadas, era o alvéolo do primeiro molar superior esquerdo.

Como tratamento, foram feitas as clássicas insuflações de iodofórmio puro, em pó, e assim a 5 do mês seguinte, retirava-se a paciente do Hospital completamente curada.

Não foi possível verificar-se a espécie da mosca em causa.

Segunda observação: (resumida) - Benedicto C., mestiço, com 29 anos, solteiro, empregado num estábulo, residente em Campinas, dá entrada na 7.o, Enfermaria (Clínica O-R-Laringológica) da Santa Casa, a 7 de novembro de 1932. Ha 24 horas manifestaram-se dôres intensas em alguns dentes, e verificou haver na bôca bichos de mosca.

Pelo exame fica consignada a presença de certo numero de larvas nas gengivas, ao redor de alguns dentes: incisivo central direito, incisivo central e lateral esquerdos, canino esquerdo. O primeiro dêles estava reduzido quási á raiz, e as larvas enchiam a cavidade alveolar, tendo perfurado a gingiva do vestíbulo. Não foi, ainda nêste caso, verificada a que espécie de mosca pertenciam as larvas.

O tratamento consistiu no emprêgo do iodofórmio. A 11 de novembro o doente retirou-se curado.

O grande número de casos de miíase cavitária que tenho observado obriga-me a reputar excepcionais os que acabo de referir. Procurando, na literatura, observações que se lhes pudessem comparar, pouco ou nada encontrei. No conhecida manual de Mikulicz e Kuemmel nada ha a respeito. Pesquiza cuidadosa deu-me a conhecer apenas um caso semelhante aos dois acima descritos. Sinton relata, defacto, um caso de localização rara de miíase somente na bôca (o grifo é de Benjámins), observado num nativo da India lnglêsa. Para cima dos incisivos superiores estava a gingiva necrosada, e o lábio superior muito inflamado. Encontrei ainda uma referência a um caso de Valleix, de miíase, não dos alvéolos dentários, mas da bochecha e da gingiva. Passando ao segundo tipo de miíase, determinado pela larva da Dermatobia cyaniventris, quero relatar o caso curiosíssimo que me caiu sob os olhos. Terceira Observação: (resumida) - A menina Sílvia B., mestiça, de dois mêses de idade, residente em Porto Feliz, foi trazida pelos pais á Clinica Stevenson a 22 de janeiro de 1932.

Vem á consulta enviada por um coléga, clínico na referida cidade, o qual declarara ter a criança um berne no interior da fossa nasal. O exame deu, de facto, a prova da certeza do diagnóstico. Na face anterior da cabeça da concha inferior direita, via-se um ponto escuro, como o sinal de uma picada, ponto que dava saída, de vez em quando, a um espículo negro.

O tratamento consistiu na eliminação do estranho hóspede. Um tampão embebido em pantocaina a 2 % e algumas gôtas de adrenalina serviu para anestesiar e retrair a mucosa. Em seguida, eliminado o referido tampão, foi feito um talho com uma faca de catarata, do orificio de entrada para fóra. Após a incisão, uma simples pressão feita sôbre o local coam¡ as pontas do espéculo, fez saltar a larva inteira, mias imóvel, talvez morta pelo anestésico. Uma embrocação da cavidade com iodo diluido terminou o tratamento.

Tenho notícia de observação semelhante feita pelo Dr. Antonio Berenguer, de Mirasol.

Quarta observação: (resumida) - Do Dr. A. Berenguer, especialista em Mirasol.

O menino José T. F., branco, com 1 ano e 7 mêses, residente em Barra Grande, foi enviado ao Dr: Berenguer por um coléga, que declarava estar a criança com um berne localizado na fossa nasal esquerda.

Pelo exame, pôde o Dr. Berenguer notar que, por baixo da concha inferior esquerda, portanto em pleno ineato inferior, havia pequena tumefacção, que logo suspeitou ser o esconderijo da larva. Após várias tentativas, conseguiu introduzir no orifício de penetração uma sonda de Bowmann e, destarte, tentar efectuar a dilatação do pertúito, o que, aliás, não deu resultado. Tomou então de uma faca de catarata e alargou o orifício, extraindo a larva com uma pinça ocular (pinça de Desmarres).

Ainda dêste casa ha, ao que soube, uma observação do Dr. Pedro Falcão, especialista em Ribeirão Preto.

A presença do berne nas fossas nasais, quer no meato inferior, quer na concha é tambem de observação extremamente rara. Teno visto muitas localizações algo esdrúxulas desta larva, entre outras as palpebrais, conjuntivais, carunculares, etc. Mas só uma vez pude encontrar o berne intra-nasal. É curioso notar que, tanto no caso por mim observado, como no do Dr. Berenguer, os clínicos que enviaram os pacientes já haviam feito o diagnóstico.

Tratando de localizações raras doa berne, não me quero furtar á obrigação de nelas incluir o interessantíssimo caso narrado pelo Dr. Luiz Brandão Filho, especialista em Araraquara. Tratava-se de uma maça de 20 ano,á, que vinha sofrendo, havia uma semana, de hemorragias constantes de origem amigdálica. Na véspera da consulta, perdera um litro de sangue. Pôde o coléga verificar que a causa destas perdas sanguíneas era uma larva de Dermatobla eyaniventris, cujo orifício de penetração estava situado no pilar anterior. Neste estranho e raríssimo caso, o difícil é compreender como a larva conseguia chegar a tais alturas. Verdade é que Arthur Neiva e Florêncio Gomes, em suas experiências, relatam um caso em que a larva andou vários centimetros. Mas, porque não penetrou ela nos lábios ou na bochecha? Teria a doente, dormindo ao ar livre como costumava fazer, feito algum movimento de deglutição que viesse pôr a larva sôbre o pilar, justamente quando esta se preparava para insinuar-se no lábio ou na bochecha? É o que me parece mais provável.

Estas localizações são, a meu ver, excepcionais. Meus colegas tem a palavra para dizer, de sua prática pessoal, se tenho ou não razão em apregoar a raridade de tais casos.

NOTA: - No Rio e em S. Paulo a maioria dos médicos escreve e pronucia miáse. Brumpt, em seu manual de parasitologia, e Le Dantec, na sua conhecida obra de patologia exótica, registravam, nas primeiras edições, a forma myase, termo que ambos corrigem em edições mais recentes. Sendo o livro de Brumpt adoptado oficialmente em quasi todas as faculdades brasileiras, atribuí á sua influência a divulgação do termo erronêo. Verifiquei. porém, posteriormente, que já em 1906, Cavalcanti Vieira, em sua tése de doutoramento, empregava a forma midse. 0 curioso é que esta forma não se encontra nos livros ingleses e alemães; vemol-a, porém, em algumas edições antigas francêsas, e nas obras italianas mais modernas.

Em verdade não pode haver dúvidas na pronúncia e na grafia deste vocabulo.Seus componentes são por demais conhecidos: a palavra grega myia, que significa mosca, e a desinência íasis, aportuguesada em fase, de uso corrente em terminologia médica para designar afecção ou moléstia. De trichos+iasis, veio triohíasis; de lilhos+iasis, veio lilhíasis, de elephanlos+iasis, veio elephantíasis, etc, vocábulos estes já existentes na própria língua grega Deles se origina o sistema de acrescentar-se as palavras de outras línguas a desinência fase, para designar moléstia ou infecção. De Neisser+íase, fez-se neisseíase, de monlia+íase fez-se monilíase, de ameba+íase, fez-se amebíase: e assim por diante

Poder-se-ia argumentar que a terminação em ia de myia foi absorvida pelas duas Cimeiras letras do sufixo íase, De ténia+íase, formou-se tenfase, de Iamblia+ íase resultou lamblíase. Par êstes casos talves se pudesse justificar escrever e dizer míase Mas se pensarmos melhor, veremos que as ditas palavras apenas perderam as duas últimas letras do radical, aceitando o sufixo completo fase. Se fizermos o mesmo com myia+íasis obteremos my íase ou miíase o que é certo.

Tais esclarecimentos não são mais do que um complemento ao que rezam os dicionários, tanto técnicos, como leigos. Não encontrei entre as numerosos consultados um só que justificasse ou mesmo assinalasse, a forma errônea miáse.

O médico tem a obrigação de saber pronunciar e escrever os termos de sua profissão. Se assim não acontece, cabe sobretudo a culpa aos professores das faculdades médicas que em geral pouco se incomodam com a nomenclatura técnica, considerando cousa Insignificante e sem a menor valia conhecer a língua e zelar por sua pureza.

RESUME':
DR. P. MANGABEIRA ALLERNAZ "De quelques localisations rares de myíases".

VA classifie cliniquement les myíases brésiliennes en deux grandes catégories:

l.o - Les myiases cauitaires, provoquées par des larves à parasitisme facultatif, très fréquentes dans le nez et dans 1'oreille, et dont les agents sont surtout Ia Coch1iamyia macellaria et Ia Sarcopitaga carnaria.

2.o - Les myiases improprement nommées cutanées, produites par des larves à parasitisme obligatoire, dont 1'insecte producteur, au Brésil, est seulement Ia mouche du berne (Dermatobia cyaniuentris); Ia présence de larves de cette mouche dans le domaine de Ia specialité est tout à falt exceptionnelle.

VA. décrit ensuite des cas de localisations rares des myiase. Du premier type, il a observé deux cas, oú les larves se cantonnalent exclusivement dans les alvéoles des dents cariées, déjà dépourvues de Ia couronne.

Du deuxième type, il rapporte deux cas, une observation personnelle et une autre due à 1'obligeance du Dr. Berenguer, oú pe berne (nom de Ia mouche adulte et aussi de Ia larve) siégeait dans Ia tête du cornet inférieur, dans le premier cas; et dans le méat inférieur, dans second casa

L'A. a observé un grand nombre de cas de myiases, mais pias un seul, pendant plus de douze ans, oú les larves se localisaient comme dans ce cas. Ce fait, et l'absence de cas pareils dans Ia litterature ont amené 1'A. à Ia publication de ces observations.

PRINCIPAIS CITAÇOES
1 - Brumpt, E. - Précis de Parasitologie - 4.a ed., p. 1050 - Masson -- Paris, 1928.

2 - Seiffert, O. - "Myiasis muscosa" in Handbuch der H.-N, Ohrenheilk. de Denker e Kahler - v. 4,-p. 422.

3 - Neiva, A. e Florêncio Gomes, J. - Biologia da mosca do berne, observada em todas as suas fases - anais Paulistas de Med. e Cirurgia 8: 197 (n.o 9) 1917.

4 - Mikulicz, J. v. e Kúmmel, W. - Die Krankheiten des Mundes 4.a ed. - 1922.

5 - Sinton, J. A. - Indian Journ. of Med. Research 9:132, 1921-1922 - Cit. Benjamins.

6 - Benjamins, C. E. - "Die Tropenkrankh. der Luftw. u. der Mundh. (Die tropische Myiasis nasalis) in Handbuch der 11.,-N. Ohrenheilk. de Denker e Kahler - v. 4,, p. 650.

7 - Valleix - Guide de Médcc. Pratique - Paris, 1861 - Cit. Kronenberg.

8 - Kronenberg, E. - "Die Chirurgie der Mundh" in Handbuch der spez. Chirurg. des Ohres de Katz e Blumenfeld - v. 2,i p. 917 - 1925.

9 - Brandão Filho, L. - Hemorragia intensa conseq. á penetr. de um berne na amígdala dir. - Brasil Médico 45:835 (n.o 36) - 1931

10 - Cavalcanti Vieira, J. - Milases das fossas nasais - Tése do Rio - Besnard - 1906.




(1) Otorinolaringologista do Hospital da Santa Casa e da "Clínica Stevenson", Campinas)

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