Ano: 1954 Vol. 22 Ed. 3 - Maio - Junho - (6º)
Seção: Notas Clínicas
Páginas: 230 a 235
SOBRE UM CASO DE FÍSTULA ESÔFAGO-BRÔNQUICA EM CONSEQUÊNCIA DE INGESTÃO DE CÁUSTICO (Nota prévia sobre novo tratamento)*
Autor(es): DR. SEBASTIÃO DE AZEVEDO - Médico da Prefeitura do Distrito Federal - Endoscopista do Hospital Getúlio Vargas
(*) Trabalho apresentado na sessão de 3 de novembro de 1953 na Sociedade de otorrinolaringologia do Rio de janeiro.
O caso aqui focalizado é muito interessante pela soma de complicações surgidas em sua evolução, todas solucionadas, sendo que a mais grave, a fístula esôfago-brônquica, por um processo que nos parece original, uma vez que não o vimos citado nas publicações científicas que compulsamos e pensamos não ser do conhecimento da maioria dos nossos endoscopistas, conforme pudemos apurar.
Trata-se de Maria do Carmo Vieira, feminina, 18 anos, cor parda, solteira, doméstica, brasileira, e que tomou o n.º 17.845, no Serviço de Otorina do Hospital Getúlio Vargas, onde foi internada em 30-7-52.
Em maio de 1952 tomou soda cáustica em grande quantidade com fins suicidas, tendo sido atendida no Posto de Socorro do Hospital Getúlio Vargas, e internada no Serviço de Clínica Médica do mesmo, de onde após melhoria do estado geral foi transferida para o Serviço de Cirurgia, onde fez gastrostomia, sendo remetida para o nosso Serviço.
Fig. 1
Ao dar entrada neste apresentava cicatrizes viciosas nos pilares e úvula. Doente ensimesmada, respondendo por monosilabos às nossas perguntas, procurando, pela ausência de informações e de colaboração dificultar ao máximo o seu tratamento, a tal ponto que não nos foi possível obter uma radiografia sua na ocasião de sua entrada por não ingerir o contraste. De modo algum quis deglutir o fio para condução da sonda dilátadora.
Em 23-8 foi-lhe feita uma esofagoscopia retrógada com passagens do fio orogástrico e dilatação com as sondas 16 e 21 de Plummer. No dia 26-8-52 a radiografia feita evidenciou estenose de 1/3 sup. do esôfago (Fig. 1).
Daí por diante foi, pouco a pouco, procurando ajudar-nos chegando finalmente a uma colaboração absoluta, como veremos, mas isto após um trabalho enorme de paciência.
Continuamos a fazer as dilatações bisemanalmente, mas desde o princípio notamos que a doente apresentava fortes crises de tosse. Como nada se visse na radioscopia que justificasse êste estado e houvesse tinia sinéquia de epiglote com a base da língua foi ela desfeita, aliás sem nenhum resultado.
Sempre insistindo em radioscopias, continuamos as dilatações. Várias radiografias de campos pleuropulmonares nada revelaram que esclarecesse a cansa da tosse.
Em 8 de novembro fizemos nova radiografia usando contraste mais fluido (lipiodol) e aí evidenciou-se uma fístula do esôfago para o brônquio direito (Fig. 2).
Fig. 2
Nesta ocasião a doente apresentou uma crise de esquizofrenia, tendo ficado por muitos dias inteiramente ausente e completamente desorientada no tempo e no espaço. Como consequência não tomou os cuidados devidos e, ingerindo a saliva, fez um quadro de broncopneumonia.
Em 23-12-52, após normalização do seu psiquismo, recomeçamos as dilatações com a sonda de Plummer.
Em 8 de janeiro do ano corrente conseguirmos broncospicamente localizar a emergência da fístula na parede posterior do brônquio fonte direito, a 4 cm da carena. O orifício fistuloso estava cercado de tecido fungoso que cauterizamos com ácido crônico ao 1/3. Repetimos as broncoscopías com cauterizações cada 20 ou 25 dias ao mesmo tempo que fazíamos as dilatações esofagianas e que eram sempre acompanhadas de forte tosse.
De abril para cá além das cauterizações com ácido crômico, fizemos também injeção de um esclerozante na base do orifício fistuloso, como se usa nas varices.
O resultado, entretanto, era praticamente nuleo o que atribuímos à saliva que, mesmo deglutida em pequena quantidade, era suficiente para manter o trajeto fistuloso.
Foi quando tivemos a idéia de usar em seu esôfago uma sonda de polietileno, de cuja existência casualmente souberamos. O polieteno é uma substancia plástica bastante flexível, leve e indeformável pela compressão, além de muito bem tolerada pelos tecidos orgânicos em contacto com os quais pode ficar vários meses sem irritá-los ou inflamá-los.
Seria, portanto, uma substância ideal, para, ajustando-se à parede do esôfago, impedir a passagem da saliva para a árvore respiratória enquanto se procedia ao tratamento da fístula por via endobronquica.
Não foi fácil encontrar a sonda conforme precisávamos mas, finalmente conseguimos uma sonda uretral n.º 20, que nos pareceu de calibre adequado ao caso, tendo em vista a sonda de Plummer que passava. Cortamo-la no tamanho necessário e a seguir amarramo-la pelas extremidades com 2 fios (Fig. 3).
Fig. 3
Com auxílio do fio orogástrico que já estava na paciente foi colocada em posição no esôfago (Fig. 4) e fixada fortemente na pele, isto em 14-7-53.
O resultado foi espetacular: no mesmo momento a paciente passou a ingerir líquidos pela boca sem o menor sinal de sua passagem para a árvore brônquica. A alegria despertada na doente, que, havia 8 meses só se alimentava pelo gastrostoma nos chegou a fazer receiar pelo seu estado mental, que já estivera anteriormente alterado.
48 dias após já a doente se alimentava exclusivamente pela boca, ficando a sonda gástrica mantida somente para a eventualidade de uma possível obstrução da sonda esofagiana.
Desta data em diante temos feito broncoscopias com cauterizações de fístula e injeções de esclerozante de 20 em 20 dias mais ou menos.
Há mais de dois mêses a doente se alimenta pela boca, mesmo sem estar com a sonda de demora e as radiografias feitas em 18-8-53 (Fig, 5 e 6) não revelam mais a existência da fístula. A broncocospia feita há uma semana revelou também a grande melhoria do estado local não havendo mais o tecido fungoso antes verificado e bem assim estando a coloração da mucosa quase normalizada.
Fig. 4
Temos a impressão que está fechada a fístula esofagobrônquica, pois todas as vezes que tiramos a sonda para limpeza, fazemo-la tomar água e não verificamos os sinais de passagem desta para os brônquios. Ao mesmo tempo, com a sonda em posição, estamos mantendo a dilatação já obtida no esôfago.
Se estivermos com a razão teremos evitado para a nossa paciente, com êste nosso processo, uma operação de grande vulto, perigosa e multilante, qual seja uma toracotomia com possível pneumectomia direita, conforme impressão do cirurgião com que trinos havíamos articulado para o tratamento da paciente antes de tentarmos o uso da sonda.
Fig. 5
Fig. 6
Como fato paralelo desejavamos informar que esta paciente que não está menstruada desde que ingerira a soda cáustica, apesar de examinada e tratada por bons ginecologistas, dias após ter-se verificado a possibilidade da alimentação pela boca, sem sonda, voltou a sê-lo normalmente. Casualidade? Influência de um novo estado de espírito sôbre as glândulas endócrinas? Que o digam os especialistas.
A título apenas de curiosidade cumpre-nos informar que neste ano e meio de tratamento já tomou esta paciente perto de cem milhões de unidades de penicilina e 50 gramas de dihidro-estreptomicina, o que bem demonstra o estado grave por que passou e as possibilidades e recursos do nosso Hospital.
Ainda não consideramos curada a nossa paciente e o nosso escopo ao apresentar esta nota prévia, comunicando resultados provisórios é obter a impressão e a crítica dos companheiros mais treinados e também pedir aos que tenham casos semelhantes que empreguem êste processo para conferir os seus resultados com os nossos.
De qualquer modo, o fato de estar a doente fazendo uso das vias naturais para sua alimentação já é uma compensação bem valiosa e que aconselha o uso desta sonda de demora em casos como o presente.
Pretendemos deixa-la com a sonda durante uns 6 meses para que fique bem garantida a cicatrização da fístula com a possível cura completa.
Posteriormente voltaremos ao assunto para dar o resultado definitivo obtido.
RESUMO
O Autor apresenta um caso de estenose esofagiana por ingestão de cáustico (soda) complicado, entre outras coisas, de fístula esôfagobrônquica e que está resolvendo com o uso de sonda de demora feita de polietileno, substância plástica que muito se presta para o caso por ser flexível, dura e muito tolerável pelo organismo.
No momento a doente não mais apresenta sinais radiológicos, clínicos ou endoscópicos que façam suspeitar da existência da fístula.
É processo original e o autor dá com isto a sua nota prévia prometendo voltar ao assunto quando julgar definitiva a cura da doente.