Ano: 1933 Vol. 1 Ed. 1 - Janeiro - Fevereiro - (4º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 16 a 22
ABCESSO RETRO-MASTOIDEO COMPLICADO. PHENOMENO DE ASPIRAÇÃO DE AR PELO SEIO SIGMOIDEO. HEMEPLEGIA ALTERNA. CURA.
Autor(es): Dr. MARIO OTTONI DE REZENDE
Da Santa Casa de S. Paulo
C. L., 38 anos, brasileiro, casado, branco, procurou-nos em 2 de Outubro de 1931 dizendo que havia 15 dias começára a doer-lhe atrás do pavilhão da orelha direita, sem que, anteriormente, tivesse tido a mínima perturbação para o lado do ouvido deste lado. Nunca teve, mesmo quando criança, supuração de ouvidos. Ha 4 dias começou a inchar-lhe o lugar doloroso, sentindo-se com mal estar, sobretudo á tarde, razão pela qual pensava que tinha febre nestas horas de abatimento. As dores cediam ligeiramente com aplicações quentes e úmidas.
EXAME: - Doente regularmente nutrido, tendendo mais para o magro que para o gordo. Apresentava a região mastóidea direita edemaciada e infiltrada, ligeiramente avermelhada e dolorosa á apalpação e á compressão em toda sua superfície. A infiltração e o edema aumentavam, grandemente, para traz, ao nível do ponto de emergência da emissária mastóidea. Nesse ponto havia fluctuação franca. As provas de audição eram normais, o que concordava com a otoscopia, que deixou ver membrana timpânica absolutamente normal.
O paciente apresentava, no couro cabeludo, diversas placas de foliculite eczematosa que, a nosso ver, explicava, bem a etiologia do abcesso retro-mastoideo de que era portador por infecção ganglionar com supuração secundaria. Não contente com o nosso diagnostico, ABCESSO RETRO - MASTOIDEO SECUNDARIO A FOLLICULITE ECZEMATOSA DO COURO CABELLUDO, mandamos fazer uma radiographia da mastóide direita e outra da esquerda, para comparação.
0 resultado do exame radiológico foi de acentuada opacidade da apophyse mastoidéa direita.
No dia 4 de Outubro de 1931 foi aberto o abcesso retromaitoideo e, de acordo com o exame radiologico, retirada uma parte da cortical da mastóide com o fim de verificação.
A mastoide apresentava-se absolutamente normal.
Ao retirar uma fina camada da cortical, caímos, imediatamente, sobre o seio sigmoideo que ficou exposto numa extensão de 1/2 cm.2, mais ou menos.
Abscesso drenado com dreno de borracha, curativo.
5, 6 e 7 de Outubro de 1931 - Seqüência operatória anormal - Temperatura elevada á tarde, 39º,5, 40% precedida de calafrios prolongados.
Na noite de 7 para 8 grande hemorragia da ferida operatória. Pela manhã do dia 8 foi reaberta a cicatriz operatória e retirado coagulo, não tendo sido possível determinar o ponto donde proveio o sangue. Tamponamento da ferida e curativo á gaze iodoformada. O paciente continuou com calafrios mais brandos e temperatura de 38º,5 á tarde.
Dia 9 de Outubro de 1931. Quase ao meio dia, percebeu que qualquer cousa lhe batia atrás da orelha, e, em seguida, sentiu-se com falta de ar e perdeu os sentidos por alguns minutos.
Refizermos o curativo ás 3 horas da tarde e, em nossa presença, repetiu-se o fenômeno do barulho que nada mais era do que a entrada de ar no seio sigmóideo, que havia rompido em uma pequena extensão, o que fazia aspirar o ar pelo seio como uma verdadeira válvula.
Nesta ocasião o paciente começou a sentir-se mal, opressão torácicas, sensação de parada do coração, não tendo, porém, perdido os sentidos, devido ao termos tamponado rapidamente o orifício de entrada do ar.
Deliberamos reopera-lo, nesta mesma tarde, e para isto sahimos do Hospital afim de providenciarmos a respeito. Não haviamos sahido ha meia hora e já nos telephonavam que o doente tinha ficado paralysado de todo o lado esquerdo dó corpo, hemiplegia esquerda.
Voltamos ao Hospital, e reoperamos o doente, fazendo um grande alargamento da zona em ¡que o seio fôra exposto, afim de destruirmos o phenomeno da válvula, por uma abertura maior do proprio seio. Em seguida tamponamos e fechamos a ferida, sem suturar.
Já ao acordar da operação apresentava o paciente desvio conjugado do olhar, para o lado lesado e respiração typo Schein-Stock.
Foi praticada uma injeção endovenosa de 50 c. c. de sarro glycosado hypertonico a 40% e deixado o doente em repouso. No dia seguinte, 10 de Outubro de 1931, com surpresa, encontramol-o relativamente bem, lucilo, sem desvio conjugado do olhar e, tão somente, com paralysia dos membros superior e inferior do lado esquerdo.
Examinando-o, rapidamente, notamos que a paralisia era ligeiramente espastica, sobretudo na perna, e que a sensibilidade ao tacto, dolorosa e térmica estavam conservadas. Sentia formigamento no braço esquerdo. Não havia nada para o lado da cabeça e face, nem dores, nem rigidez muscular da nuca, nem fotofobia, etc.
Temperatura normal, 3604, - Pulso 80. Chamado um neurologista (Dr. Fausto Guerner), "pensou numa meningite aguda, com symptomatologia classica, seguida de hemiplegia, que cuida ter apparecido após um ictus de curta duração".
O paciente melhora dia a dia, tanto da ferida operatória quanto ao estado geral. Não passara uma semana e já tinha tido alta, para sua residência, ainda com a hemiplegia do lado esquerdo do tronco e membros.
Esta, com o passar dos dias e com o tratamento pelas massagens e mobilização, entrou de melhorar até que, alguns meses depois, o doente já andava e movia o braço esquerdo. Hoje, 1 ano após, acha-se bom, tendo restado de sua moléstia uma deficiência de motilidade do pequeno dedo da mão esquerda no movimento de supinação e no levantamento do braço sobre a espádua.
Estado geral magnífico, sensório livre, espírito lúcido. Ferida operatória boa; ligeira depressão ao nível do plano mastóideo direito.
COMMENTARIOS: - De todo o decurso tempestuoso, que acabarmos de descrever, ressaltam vários pontos interessantes que merecem comentados e, quiçá, discutidos:
É nosso habito, quando das intervenções sobre a mastóide, deixarmos na parte inferior da ferida operatória uma pequena ponta de gaze iodoformada, que é retirada após 3 dias e substituída, durante 24 ou 48 horas, por um pequeno dreno de borracha. Logo que a secreção da ferida se torne serosa, de cor amarelada, retiramos, também, este dreno, e deixamos fechar a incisão operatória.
Em nosso caso foi assim o sucedido; retirada a gaze e substituída por um dreno, mesmo porque este era mais favorável á drenagem do pus do abscesso retro-mastoideo, no 3º dia de sua colocação processou-se a ruptura do seio sogmoideo, causa do fenômeno de aspiração valvular do ar por este vaso sanguíneo, e da hemorragia intensa que se processára. Esta cedeu pela formação de um coagulo tampão que retirado, com a remoção do sangue que enchia toda a região operada, deu causa á aspiração do ar pelo seio venoso e a todos os fenômenos decorrentes de sua penetração na corrente circulatória: opressão, falta de ar, real estar geral, syncope, etc., que durava tanto tempo quanto o de duração da aspiração.
Note-se que o fenômeno da aspiração teve lugar sem hemorragia, o que quer dizer que havia um trombo-endo-venoso do lado distal, ou qualquer impedimento á passagem do sangue, que deu causa á aspiração pelo vácuo sinus e pela pressão negativa da caixa torácica.
Este fenômeno aspiratório repetiu-se por duas vezes, sendo que na ultima destas estávamos presente e observávamos a ferida, afim de podermos localizar o lugar em_ que o ar entrava na circulação. A aspiração tinha lugar ruidosamente, de forma a poder ser ouvida, mesmo quando da aposição do curativo, e não só pelo paciente, como pelas pessoas próximas. Foi após este ultimo fato que resolvemos, logo, o alargamento da parte exposta do seio sigmóideo, afim de que fosse destruída a razão de ser da válvula aspiradora. Antes mesmo de termos praticado esta revisão operatória, o doente ficara paralisado de todo o lado oposto á operação. Esta paralisia teve lugar bruscamente, sem contraturas, sem perda de conhecimento de especie alguma, permanecendo o paciente completamente lúcido. Nesta ocasião a temperatura era de 36º,5, pulso cheio a 80. Ao chegarmos ao lado do doente encontramo-lo eufórico, com paralisia completa do membro superior e inferior esquerdos. Face normal.
Paralysia tipo levemente espastico e cota sensações de formigamento doloroso ao tocar-se o membro inferior, sobretudo ao nível do joelho. O calor e frio eram percebidos, assim tambem a sensibilidade profunda estava conservada.
Não havia Babinsky, nem clonus. A nossa impressão inicial foi a da existência de um trombos gasoso, no território da sflviana direita, ou de uma hemorragia que só aceitariamos si se tivesse processado ao nível da capsula interna, pois que a sua extensão, caso na córtex, traria, concomitantemente, fenômenos epileptoides, ausentes no paciente. Numa meningite não pensamos; faltavam a nosso ver quase todos os symptomas. 1) - o doente não acusava rigidez da nuca; 2) - não apresentava sinal de Kernig; 3) - estava completamente lúcido e não se queixava de dores de cabeça; 4) - temperatura normal e pulso normal. E' verdade que o Dr. Fausto Guerner achou que ele tinha a fenomenologia clássica de meningite; é também verdade, embora raro, que as meningites podem produzir hemiplegias por thrombose dos vasos da pia-mater, irrigando os centros de inervação dos membros, mas, pelo que conhecemos da symtomatologia apresentada pelo paciente, e a clássica dos livros, não vemos por onde fazer um diagnostico de meningite. E' certo que o Dr. Guerner diz, agora, em carta a nós dirigida, não ter reminiscência exata do exame que fizera.
O exame do liquido cephalo racheano, praticado 24 horas, após o apparecimento da hemiplegia, em 12 de Outubro de 1931, reza:
Pressão inicial - 70 - final 34 - Coefficiente Azala: Qr. 9, 7 Ord. 1,8.
Liquido limpido, incolor.
Chloretos, 6,70 p. litro.
Albumina 0,70 por litro (normal 0,20)
Contagem elementos celulares: 38,9 mm. 3, o que indica uma leucocitose severa. Formula citologica de Ravaut e Boulin.
Lymphocyto - 82%
Médio - 8%
Grandes - 3%
Polynucleares - 7%
Pesquizas globulinas - Pandy - Opalescencia
Nonne-Appelt - Opalescência
Weichbrodt - Opalescência
Exame bacteriológico e cultura - negativos.
E' verdade que o exame do liquido fala por forte irritação meníngea, sendo mesmo todas as provas acentuadamente positivas - albumina 0,70 por litro, lymphocytose a 82%; células á quase 40 por mm.3., Pesquisas globulinas todas positivas.
Perguntamos, no entanto, o foco de amolecimento ocasionado pela embolia, não seria suficiente para produzir esta reação meníngea de tipo seroso, sem fazer lesões irritativas suficientes á interiorização do sofrimento das meningéas? No caso em apreço, se, de fato, o paciente teve uma meningite serosa, amicrobiana, seria ela bastante para produzir a hemiplegia de que o doente era portador? Esta lesão que deveria ser a de uma, trombose, no território irrigado pela sylviana, não produziria outra sintomatológica? Poderia cessar a existência da meningite serosa com a simples eclosão da hemiplegia ?
A queda da temperatura e a regularidade do pulso se processariam dentro do curto período de algumas horas?
A meningite serosa caracterizada pela violência do aumento da pressão intracraniana, e, ainda mais, pelas dores de cabeça de grande intensidade, teria, no nosso caso, evoluído silenciosamente, sem que o doente nada sentisse para o lado da cabeça, e com uma pressão inicial de 70 (manômetro de Claude) apenas?
Pensamos que muito embora o exame do liquido cephalo-racheano mostre a possibilidade da existência de uma meningite serosa em nosso caso, devemos procurar uma outra causa que explique, igualmente, o grau de irritabilidade meningéa apresentado, dada a dissociação entre o resultado deste exame e a symptomatologia, clinica observada no doente.
O foco de amolecimento cerebral de origem embolia e, também, a presença de um hematoma, ou na córtex ou na cápsula interna, podem occasionar a irritação bastante para que um processo modificante do liquido cephalo-racheano tenha lugar.
Outro ponto do problema que necessita ser esclarecido, em nosso caso; seria o de como se processara a marcha da embolia gasosa; si do seio sigmóideo - via aurícula direita, ventrículo direito - artéria pulmonar, capilares do pulmão, veias pulmonares - aurículo esquerdo, ventrículo esquerdo - aorta, etc., ou si, como mais possível, supondo a persistência do buraco de Botal - auricula direita - auricula esquerda - ventriculo esquerdo, etc.?
Não sei como explicar a marcha de um embolo, mesmo gasoso, partindo do seio sigmóideo, sem que este segundo modo de caminhamento tenha sido o real. E' preciso notar que ha quem aceite a idéia da passagem pela via rede capillar dos pulmões, facilitada pela força de contração do ventriculo direito.
A massa gasosa, depois de finamente subdividida, no reticulo dos capilares pulmonares, se reuniria novamente em núcleos gasosas possíveis de poderem ocasionar um trombo embólico, suficiente para produzir a hemiplegia em apreço.
A existência de uma trombose partida do seio sigmoidéo, não seria justificável em nosso caso, pois que o trombo, com ainda maior dificuldade, e com menor probabilidade e acceitabilidade, teria que percorrer um dos caminhos descritos e, se o embolo gasoso difficilmente póde ser explicado, ainda menos se solucionará o caso de um trombo que só a persistencia do buraco de Botal tornaria admissível, o ser tido como causa da hemiplegia.
Diz L. HAYMANN (DENKER E KAHLER) - Vol. 8.º - pág. 128), que em regra geral o material infeccioso transitando pela via venosa, chega ao coração e deste ás arterial pulmonares. Aqui póde elle, de accordo com seu tamanho, ou ficar parado nas artérias terminaes ou penetrar na circulação geral.
Os grandes trombos só poderão passar quando da persistência do forâmen oval ou de Botal".
Geralmente a retirada de um trombo do seio sigmoidéo, ou outro, em posição assentada, favorece a penetração do ar no aparelho circulatório.
Aqui, está claro, a diferença da pressão sanguínea nos seios, que anda de acordo com a intracraniana, é responsável pelo acidente quando da posição assentada. Já KOERNER e BRIEGER tiveram ocasião de observar casos em que o seio sigmoidéo mostrou-se vazio de sangue nesta posição.
A hemorragia da cápsula interna deve ser afastada na interpretação da hemiplegia de nosso caso, sabido como é, que as lesões internas e afastadas das meningéas, não ocasionam fenômenos de irritação destas. O exame do liquor fala pela existência desta irritação. A hemorragia da cortex não me parece estar em jogo, dada a necessidade de sua extensão e quantidade, para produzir a hemiplegia e, ainda mais, a evolução da afecção seria muito mais lenta que a de nosso caso, que estava quase que completamente são, já dentro de 3 ou 4 meses.
A reabsorção do embolo gasoso se dá, é claro, muito rapidamente, e só ficando dele o efeito delecterio produzido pela demora no processar-se a nutrição da zona cujo afluxo sanguíneo impedira.
E foi esta eschemia passageira que produziu o amollecimento relativo da parte da córtex, de onde provinha a innervação para o hemi-corpo do lado opposto á lesão; como, porém, este amollecimento não foi completo, a "restitutio" se deu em sua quase totalidade, ficando lesados, por enquanto, e quiçá, definitivamente, alguns ranusculos nervosos destinados ás pequenas zonas, ainda com motilidade diminuídas: musculos pronadores, musculos motores do pequeno dedo e musculo da deltoide do lado lesado.
Eis o que, superficialmente, pôde uni oto-rhino-laryngologista dizer de todo o complicado neurologico de seu paciente. Como conclusões podemos mencionar:
1º) - O uso de um dreno de borracha, numa ferida mastoidéa com seio sigmoidéo exposto, deve ser evitado.
2º) - O alargamento immediato da abertura de um seio venoso, era que o phenomeno válvular exista, deve ser regra urgente, girando não a ligadura da jugular.
3º) - Nem sempre os dados radiografemos da mastóide, si bem que nítidos, devera ser tomados em consideração. Os sinais clínicos de mastoidite devem primar sobre os da radiografia.
4º) - Não é fácil a differenciação da entidade mórbida causadora da hemiplegia em casos como o nosso.
5º) - O caminhamento de um embolo gazoso ou outro, partido do seio sigmoidéo, e occasionando urna hemiplegia alterna, irão é de facil explicação.
6º) - O exame do liquido cephalo racheano necessita interpretação consentanea com os dados clínicos encontrados no doente.
RESUMÉ:
Abcés retro-mastoïdien. Antrotomie. Aspiration de 1'air par le sinus latéral. Hemiplêgie. Guèrison.
L'A. présente un cas d'abcés retro-mastoïdien droit, après folliculite du cuir chévelu. Température 38,5, mal de tête, principalément á Ia mastoïde. Otoscopie O. D= normal. La radiographie de la mastoïde, cépendant, révélait une mastoïdite. Antrotomie: mastoïde normal. Exposition du sinus latéral, qui était très superficiel. Au 4e jours, rupture du sinus et aspiration brusque, bruyante, de 1'air par ta voie veneuse, suivie d'angoise, prostation et hemiplégie du coté gauche. Aprés 3 mois, par traitément eléctrique, massages etc., disparition lente de l'hemiplégie et prêsque complétement un an après.
L'A., en étudiant la symptomatologie présentéee par le malade, explique comme cause de 1'hémeplégie, une embolie gazeuse, qui a produit une zône de ramollissément de l'écorce juxta-meningée, justement á la zone motrice des membres paralysés.