Ano: 1944 Vol. 12 Ed. 1 - Janeiro Fevereiro - (4º)
Seção: Notas Clínicas
Páginas: 34 a 42
SOBRE DOIS CASOS CURIOSOS DE OTORRINOLARINGOLOGIA (1)
Autor(es): DR. SILVIO MARONE
Nem sempre é dado ao médico deparar com entidades mórbidas raras ou com um cortejo de sintomas ou sinais pouco frequentes que lhe permitem apresentar-se perante seus colegas. Nem essa é a finalidade das Sociedades Médicas.
Os casos que ora mostramos são de processos patológicos comuns nos outros setores da Medicina, mas pouco frequentes no da Otorrinolaringologia. O valor destas observações - si valor teem - está justamente em lembrar aos colegas de especialidade que tambem podemos ser procurados por um extenso carcinoma da região mandibular e que tambem um fibroma duro pode instalar-se na bochecha.
O raro é raro já disse algures. O mais comum ou o que póde aninhar-se em nosso setor com mais frequência ou com alguma probabilidade, isso é que deve ser lembrado; e todo trabalho, cuja finalidade é trazer de novo à mente dos colegas essa possibilidade, é digno de interesse.
É o que se dá com os casos que apresentamos.
SOBRE UM CASO DE FIBROMA DURO DA BOCHECHA
M. B. 39 anos. Brasileira. São Paulo. Parda.
Anamnese: - Ha questão de alguns anos para cá tem notado que adquiriu o costume de, instintivamente, morder a mucosa bucal ao nivel dos últimos molares (área fissural) de ambos os lados. Tem notado que, na mucosa bucal E. ha mais ou menos dois anos, tem aparecido uma pequena saliência que em nada lhe prejudica a mastigação. Entretanto mastigando continuamente, agora, essa nova formação, a mesma tem aumentado lentamente de volume, prejudicando-lhe a mastigação, pois às vezes chega a insinuar-se entre as arcadas dentárias que a ferem na trituração. Por esse fato procurou o Serviço do Dr. Mario Otoni na Santa Casa, onde foi examinada pelo Dr. Ernesto Moreira que teve a gentileza de nos ceder o caso.
Nota a doente que do lado D. na mesma altura que o do lado E. está começando a se constituir outra idêntica nova formação, cuja origem é tambem devida à mastigação entre as arcadas dentárias da mucosa correspondente, e cuja evolução está sendo semelhante ao do lado oposto. Nem emagreceu, nem perdeu o apetite ou disposição para o trabalho.
Exame: Trata-se de pessôa fisicamente bem constituída e robusta.
Na mucosa da cavidade bucal E. (Fot. n.° 1) situada na região já indicada encontramos uma tumefação de, mais ou menos, 4 cent. de comprimento por 2 de espessura, pediculada e ligeiramente dura à palpação. A mucosa dessa neoformação se apresenta lisa, normal, com aspecto idêntico ao da mucosa circunjacente. No lado D., na região correspondente à já descrita, verifica-se pequena tumefação do tamanho aproximado de um grão de milho. Ausência completa de qualquer gânglio cervical. Dentes perfeitos.
Firmamos o diagnóstico de fibroma da bochecha e praticamos a sua exerese por meio do bisturi elétrico. A peça foi fotografada. (Foto n.° 2).
O diagnóstico anátomo-patológico realizado pelo Dr. C. Mignone revelou "fibroma duro".
COMENTÁRIO
Os fibromas são néoformaçóes que se formam à custa do crescimento excessivo do tecido fibroso conjuntivo, isto é, devido à proliferação de células conjuntivas que vão formar u'a maior ou menor quantidade de fibras colágenos. São mais ou menos arredondados e quasi sempre seus limites são nítidos, de crescimento expansivo e local, caractéres êsses dos tumores benignos.
Na classificação dos tumores segundo BARBACCI, os fibromas são tidos como tumores simples, de origem conjuntiva e adultos, maduros ou benignos.
Decorrente da quantidade de fibras colágenos e de células, temos os fibromas duros, quando predominam as fibras, ou quando ha precipitação de sais calcáreos ao redor dessas fibras, fibromas moles quando ha maior quantidade de células e menos fibras colágenos, e fibromas císticos quando ha no seu interior cavidade cística.
Desenvolvem-se em qualquer parte do organismo, onde haja tecido conjuntivo. Podem tambem localizar-se na mandíbula ou no interior dos ossos maxilares sendo chamados fibromas centrais, ou à custa do tecido conjuntivo do periostero desses ossos (fibromas periostáis). Quando de localização mandibular ocasionam distensão desse osso, acompanhados de desconforto e perturbações no falar e mastigar.
FOTOGRAFIA 1
FOTOGRAFIA 2
Fibroma duro da bochecha - (médio aumento). Notam-se as varias camadas epiteliais de estrutura e volume normais e intensa proliferação da camada dérmica.
Fibroma duro da bochecha - (grande aumento focalizando exclusivamente o derma). Grande proliferação das fibras conjuntivas fibrosas que se apresentam intimamente coligadas, o que dá ao tumor o seu caracter de dureza.
Etiologia: Os fibromas são o resultado de irritação crónica e se originam nos espaços interdentários. Às vezes são devido à irritação causada por trabalhos dentários restauradores mal ajustados.
Existem várias teorias para explicar a origem desses tumores, entre as quais a da herança, a embrionária de COHNEING, a irritativa de VIRCHOW, (aplicável no caso presente), a parasitária etc., estando quase sempre presente a causa desencadeadora.
Entretanto, dado o pequeno número de casos encontrados, é-se levado a admitir certa predisposição especial (terreno) para êsse tipo de néo-formação, predisposição essa que encontra sua manifestação quando se ajunta um fator excitante (irritação), traumático e repetido.
Nos casos consultados na literatura são sempre aparelhos de prótese ou cáries dentárias que determinam, em certas zonas da mucosa bucal, irritação constante que vai originar a neoplasia. Aliás essas mesmas circunstâncias (terreno e irritação) se encontram na origem do epulis.
Encontramos em Thoma, "Oral Pathology" referência a um caso idêntico ao que estamos apresentando.
Os fibromas sésseis são mais frequentes na mucosa oral que cobre a tuberosidade maxilar e esta pode ser aumentada de volume na direção lateral.
Os fibromas da área fissural podem sofrer injúrias e irritações constantes e ulcerarem-se. Acredita-se que isto ocasione um maior crescimento e invasão dos tecidos subjacentes, transformando-se o tumor benigno em fibrosarcoma.
Diagnóstico: - Baseado em seus caracteres clínicos, aspecto, tamanho, consistência, ausência de repercussão ganglionar (somente se encontram gânglios regionais quando a superfície do tumor se apresenta ulcerada), sua evolução lenta, insidiosa e indolor, tudo fez suspeitar que estávamos diante de uma neoplasia de caráter benigno. Contudo, apesar de se tratar de neoplasia benigna, somos sempre obrigados a proceder à biopsia quando não pudermos tirar definitivamente o tumor, afim de se garantir um prognóstico bom.
Técnica cirúrgica para extirpação do fibrorna de implantação bucal usada pelo prof. Bergara em sua clínica - A técnica desse A. é dividida em 5 tempos. No primeiro procede-se à anestesia local com adrenalina-novocaina, circunscrevendo toda a tumoração. No 2.º tempo, com uma pinça de Kocher apanha-se toda a tumoração pelo seu ponto de implantação, com o cuidado da pinça de Kocher ligar-se em seus bordos, o que facilita a ressecção e sutura do tumor e ainda vai produzir pela compressão esquemia da região. No 3.º tempo com agulha de Reverdin ou com a de sutura comum fazer-se suturas apanhando o ponto de implantação do tumor, entre a bochecha e a pinça; No quarto tempo com um bisturi secionasse a implantação com grande facilidade, com o cuidado de deixar-se os bordos da ferida formado de tecido são; e por fim retira-se a pinça notando-se então os bordos da ferida atravessados por pontos de sutura. Em seguida é completada a sutura.
No post-operatório aconselha-se evitar movimentos mastigatórios bruscos, dando-se preferencia à alimentação líquida e fria, evitar o uso de prótese, proceder a bochechos com água iodada, ou no caso de dor adicionar na fórmula substância anestésica local ou indicar o uso de comprimidos analgésicos. No caso de se tratar de operação extensa aconselha-se o uso de gelo. 24 horas depois retiram-se os pontos.
Utilizamos no nosso caso essa técnica mais simplificada: depois da anestesia local com adrenalina cocaina e preensão do tumor pela sua base, separamo-lo por meio do bisturi elétrico. Resultou uma superfície de mais ou menos 4 cent. de diâmetro na qual mandamos fazer toques diários cota mercurio-cromo a 2%, e bochechos antisepticos. Resultados excelentes. Cura.
EXTENSO CARCINOMA ESPINO-CELULAR CORNEIFICADO DA REGIÃO MANDIBULAR
J. A. G. 66 a. Brasileiro. Morador em São Paulo.
Q. Ha um ano, tumorações na região infra-mandibular.
H. P. M. A. - Estando até então com bôa saude, notou ha um ano, o aparecimento, na comissura labial E., de uma pequena lesão purulenta, dolorosa e rasa. Procurou ambulatório do Hospital São Paulo, onde lhe foi feito extração de pequena porção da lesão para exame, cujo resultado não lhe foi dito. O restante da lesão permaneceu sempre o mesmo, mais ou menos durante seis mêses, quando então cicatrizou com curativos locais. Refere que não apresentava enfartamento ganglionar regional. Após fechada a lesão surgiu na região supra-hioidea pequeno infartamento duro, doloroso, do tamanho de uma azeitona, permanecendo assim durante 4 mêses, quando então começou a aumentar de volume chegando aproximadamente, ao de unta laranja pequena, de cor avermelhada, dolorosa, quente, e de consistência mais ou menos pastosa, dando saída de pequena quantidade de puz amarelo, pegajoso. Não refere febre, nem mau estar. Usou remédios locais para amolecer o tumor.
Nessa mesma época, notou que de ambos os lados apareceram à Esquerda, mais tres infartamentos ganglionares sub-maxilares e à Direita dois com a mesma localização. Notou tambem que, à medida que os gânglios aumentavam de volume, a pele que os envolvia se tornava aderente e avermelhada, dando saida a puz amarelado e sanguinolento. Não refere febre e nada sentia para o lado dos demais aparelhos.
As tumorações foram aumentando de volume, fundindo-se todas numa única que atingiu o volume de uma laranja-baía. Não refere infartamento ganglionar nos outros territórios do corpo. Procurou éste Hospital, apresentando um ponto de flutuação sobre o tumor à E. e, praticada a drenagem, notou-se a saída de puz avermelhado e num volume de, mais ou menos, 30 cc. Nada foi encontrado nos demais aparelhos.
Exame local: Em ambos os lados notámos (Fot. n.º 3) grande massa tumoral na região infra-mandibular, atingindo a região supra-hioidea, dirigindo-se lateralmente até a margem anterior do esterno-cleido-mastoideo. Massa tumoral irregular, bocelada, com vários pontos de necrose à Esquerda, deixando sair líquido sero-purulento e fétido. A pele é aderente e hiperemiada, notando-se infiltração da região mentoniana até as comissuras labiais.
FOTOGRAFIA 3
Apalpação: Tumoração dura, dolorosa, quente, cone alguns pontos de infiltração em comunicação com os orifícios de onde sae puz à expressão. A abertura da rima oral acha-se prejudicada em parte devida à massa tumoral que repuxa a comissura labial esquerda para baixo (processo cicatricial do início da doença).
Foi praticada a biopsia que resultou: "Carcinoma espino-celular corneificado" (Dr. H. Cerruti).
R. W. Negativa.
Radiografia do mento: (Foi. n.º 4) "Osteolise circunscrita do bordo inferior do mento e parte do bordo inferior do ramo da mandíbula; acentuado espessamento da parte mole subjacente, não se notando aí qualquer textura óssea. Processo tumoral das partes moles, com compressão óssea". Dr. Olavo Pazzanese. 18-X-43.
FOTOGRAFIA 4
COMENTÁRIOS
Pela anamnese verifica-se que a neoplasia teve origem na comissura labial E. por uma lesão pequena e rasa que, provavelmente, já apresentava suspeita de tal, pois mereceu dos colegas uma biópsia, cujo resultado não se soube.
A evolução da neoplasia foi bastante curiosa e instrutiva, pois, segundo o paciente, chegou até a cicatrizar com simples curativos locais e não determinou o aparecimento de gânglios cervicais ou em qualquer outra parte do corpo, indicadores de metástases, a não ser tardiamente (4 mêses depois).
Outro dado bastante instrutivo é o aparecimento de puz nos gânglios, o que poderia, às vezes estabelecer confusão, principalmente com osteomielite, maximé no início do presente caso onde houve muitos ganglios bocejados (simulando os múltiplos abcessos) e até osteolise da mandíbula.
O carcinoma pode ocorrer nos seguintes pontos da cavidade bucal: os lábios, a mucosa bucal, a língua, o assoalho da boca, a gengiva e o palato. O carcinoma pode invadir o osso como metástase de uma localização primária da língua, nariz ou seio maxilar. Raramente é o osso a séde primária da neoplasia.
A ocorrência mais frequente é a pele principalmente a da face. Pode, porém, desenvolver-se sobre a mucosa oral, que é séde frequente de lesões produzidas por trauma ou ainda ter origem dentária. É tambem comum sua localização sobre leucoplasia. São muito menos malignos que as outras formas de tumores. São formados à custa de células basais da camada de Malpiglli. O tumor invade as camadas moles, difunde-se perifericamente e cresce muito lentamente. Apresenta-se com bosseladuras o que lhe vale o nome de "tumor em turbante" - pois que, quando localizado na pele da cabeça, se assemelha a um turbante.
É um tipo de tumor relativamente frequente e relativamente benigno, crescendo com muita rapidez perifericamente, e ulcerando-se, pelo que é tambem conhecido como lílcera arredondada. As localizações mais comuns são a mucosa bucal, o nariz, as pálpebras e o ouvido. O lábio superior é frequentemente atingido, mas a ocorrência no lábio inferior é raro. Embora sejam tumores de malignidade um tanto baixa, como são formados por células relativamente indiferenciadas, respondem bem ao tratamento por irradiação, e o uso de RX ou radium é satisfatório.
O osso subjacente pode ou não ser invadido. O nosso caso apresentou invasão na mandíbula (Radiografia), com extensa área de erosão. O tumor atinge os linfáticos e veias entrando pelo sistema haversiano da cortex do osso e facilmente o engloba totalmente. Decorrente desse fato ha expansão do maxilar com deformidade e, às vezes, mesmo fraturas.
BIBLIOGRAFIA
THOMA K. - "Oral Pathology" - The C. V. Mosby Company - St. Louis - 1941.
VIVONE, R. e QUEREILHAC, N. - "Técnica quirurgica para la extirpacion de los fibromas com base de implantacion blanda" in "Cirurgia Dento-maxilo-facial" Publicacion oficial de la Sociedad Argentina de Cirurgia Dento-Maxilo-Facial n.º 1, 1939 - Buenos Ayres.
THOMA, K. - "Oral Pathology" - The C. V. Mosby Company - St. Louis - 1941.
CUNHA MOTA L .- "Pontos de Anatomia Patológica" Aulas de Anatomia Patológica dadas na Faculdade de Medicina de S. Paulo.
(1) Trabalho apresentado à Sessão de O. R. L. da Associação Paulista de Medicina em 17-10-43.