Versão Inglês

Ano:  1946  Vol. 14   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 11 a 36

 

A SURDEZ DE BEETHOVEN - Aspectos Clínico e Histórico (*)

Autor(es): DR. FRANCISCO DE PAULA PINTO HARTUNG

Poucos aspectos da medicina na história terão despertado o interesse e a curiosidade comparáveis àqueles da surdez de Beethoven. Pelo menos na nossa era. E' possível e provável que, na Grécia clássica, o paradoxo da gagueira de Demósthenes tenha tambem apaixonado os pesquizadores. Entretanto, si a oratória do ateniense imortal é conservada com a música de Beethoven no mesmo relicário de cultura da humanidade, o caso patológico de Demósthenes perde muito do seu significado pois que a bruma do tempo não permite mais nitidez e o patinado da lenda não convida nem anima a um tal diletantismo histórico. Diziam os antigos que o famoso tribuno do século do esplendor de Athenas se via forçado a exercitar-se com pequenos seixos e pedras na boca, afim de corrigir os seus vícios de dicção e de oratória. Dois mil e duzentos anos depois, vamos surpreender o gênio da música com a sua varinha estirada entre o piano e os ossos do crâneo, tentando compensar pela condução óssea a parte que já havia perdido das ondas aéreas do som. Por isso se compreende, que si a gagueira de Demósthenes é sujeita às fantasias da lenda e da tradição, ao contrário, a surdez de Beethoven tem a sua história fundamentada em dados e documentação recentes.

Muito natural pois esse maior interesse ou curiosidade para o caso do insigne compositor. Não só pela projeção do seu vulto espantoso na música contemporânea ou pelas cintilações do seu gênio incomparável. Tambem pela aberração, um surdo que escreve imortais páginas da literatura musical, pelo capricho do destino, pelos desígnios de Deus, permitindo que se roubasse a audição justamente ao gênio do som, por todos êstes fatos enfim que impressionam e nos chamam à meditação. Eis porque a literatura sobre Beethoven é a mais rica e abundante entre as de todos os compositores nos paizes ocidentais. E em todas as linguas. Mesmo no Japão, apezar das nossas diferenças de mentalidade e de pensamento, já se tem escrito sobre ele.

Demais, é bem verdade que o artista tem a sua Pátria, onde o seu berço foi embalado. A arte, entretanto, como as ciências, a medicina, a filosofia, não a tem porque todas fazem parte do patrimônio comum da humanidade. Por isso, como Shakespeare ou Dante, Galileu ou Newton, Pasteur ou Jennings, Lavoisier ou Paracelsius, Descartes ou Kant, Goethe ou Victor Hugo não é possível compreender Beethoven nas fronteiras espirituais da sua Patria. Diz Taine na sua Philosophie de l'Art: "O homem procura, por dois meios atingir os seus desígnios. O primeiro é a ciência, pela qual, procurando a causa e as leis fundamentais dos fatos, ele os exprime em fórmulas exatas e em termos abstratos. O segundo é a arte, pela qual ele manifesta estas causas e estas leis fundamentais, inacessíveis às multidões, e sómente apreendidas por alguns homens especiais, mas ao contrário, de uma maneira sensível, dirigindo-se não sómente à razão, mas tambem aos sentidos e ao coração do homem mais comum e humilde. Eis porque a arte tem isso de particular. E' ao mesmo tempo superior e popular. Manifesta o que ha de mais elevado e pode manifestar a todos". E' admirável esse comentário de Taine. E quem mais que Beethoven a esta arte corresponde? Mas não sómente pela sua música divina! Pela sua altivez, independência e amor à liberdade que tanto o aproximaram de Napoleão antes do Império, Beethoven passaria fatalmente à história como um cidadão do mundo, e um dos vultos que mais têm enobrecido a humanidade.

Mas abordemos o tema prometido. A Surdez de Beethoven em seus aspectos clínico e histórico. O clínico primeiro, pois que muita dúvida e divergência existem. Muita disparidade de diagnóstico, que ha interesse em elucidar e remover. Nem foi outro, aliás, o motivo da nossa sedução.

Vejamos pois que documentos a história nos fornece.

Descrição clínica do caso, não existe. Nenhum dos médicos que tratou Beethoven teve a ideia de deixá-la à posteridade embora ele próprio se tenha interessado neste sentido. Seria aliás uma observação de acordo com a época. Muito imperfeita, pela inexistência de recursos semiológicos, anterior que seria à otologia. Quando Flourens fêz a sua célebre experiência sobre o pombo, lançando as bases da futura labirintologia, Beethoven, ha seis anos que era morto. Ninguem tivera ainda a ideia de lançar mão da luz refletida para examinar um timpano. Por isso, temos de aproveitar a história da moléstia, os seus comemorativos, a anamnese, como dizemos em medicina. Aliás, é sabido, que às vezes, a anamnese é tudo, mais importante mesmo que o exame objetivo. Façamos pois isto com o caso de Beethoven. Primeiro ler as cartas. Algumas delas, nos trechos que interessem. Depois, o testamento de Beethoven escrito em Heiligenstadt, em uma das épocas mais sombrias de sua existência. Tambem nele ha trechos úteis e aproveitáveis. Enfim a autópsia, cujo protocolo é conservado em um dos museus de Viena. E' um documento muito importante e elucidativo, embora realizada em 1827, quarenta anos antes de Wirchow e da histologia patológica. Apezar de não haver pois aspectos microscópicos, a parte macroscópica é muito interessante. Permite conclusões e deduções. Veremos logo.

Toda a culta assistência conhece bem o ouvido, o nobre orgão que nos faculta o esplendor da nona sinfonia. Sabe que tem tres partes. Uma externa, o pavilhão da orelha, o conduto e as cartilagens. A segunda, mais para dentro, com o tímpano, a membrana, a sua caixa, as células satélites, comunicando-se com o faringe pelas trompas, além dos seus ossículos em cadeia. Finalmente a última, o ouvido interno, o labirinto. Como o seu nome indica, difícil, complicado, com rampas, espiraes, ampolas e canaes. Aí termina o acústico, o nervo da audição, que tambem interfere no equilíbrio. Eis aí o ouvido, em sua anatomia. Para que mais? E as suas doenças, quaes serão? Duas palavras apenas, sem as quaes não compreendemos o drama de Beethoven. Sem detalhes! Sem gerar temores! O que será privar-nos do adágio da Pathética? Em que parte do ouvido estaria assestada a moléstia de Beethoven? Muito fácil.

No ouvido externo não. Quasi sempre são molestias muito benignas e banais. Em geral, se curam logo, embora também possam sofrimentos provocar. Jamais deixam surdos os doentes para sempre, e só por excepção pódem matar. Já para o ouvido médio, diferentes são os capítulos. Há páginas graves. Gravíssimas, às vezes. Ha quem pense nelas inserir o drama de Beethoven. Outros não. Talvez Schumann, que também sofreu do ouvido, e Fauré entre os mais novos. Ambos tambem tiveram as suas maguas. Nunca, porém, como aquelas de Beethoven. E não só eles. A imensa legião de surdos que conhecemos. Não históricos, anónimos, que nem por isso sofrem menos. Só na América do Norte, dizem os numeros, dez milhões de pessôas de ouvidos imperfeitos!E a maior parte deles têm no ouvido médio a sua lesão. Otites catarraes, supurações crónicas, resultantes de abandono e do desprezo. Compreensão errada de optimismo e de saúde! Mas não é só. Há mais, além do espantalho da surdez. Taes molestias podem complicar-se. Agravam-se por vezes. Matam e com frequência. Osteites, caries, meningites, não raro fulminantes, tromboflebites, além dos abcessos do endocrâneo. Nada disso porém teve Beethoven, e são citadas estas molestias apenas para exclui-las. Para rigor nas conclusões, sem a ninguem preocupar, porque a cirurgia, as sulfas e a penicilina, as afrontam e resolvem os casos todos. Perigo apenas no desprezo. No "laissez aller". Agora o ouvido interno. O labirinto, parte na qual, a nosso vêr, se assestava a moléstia de Beethoven. Muito menos exposta às infecções que o ouvido médio, e só por contiguidade deste se contamina. E' a sede da fatal otoesclerose, de origem obscura, talvez endocrínica e hereditária, aparecendo em geral na puberdade. Tambem as zoadas, as vertigens de causa otopática, as grandes tonturas, podem depender do ouvido interno, embora muitas causas haja para taes sintomas. Depois o nervo acústico. A sífilis, as intoxicações, o fumo, o álcool. E bastante porém. Solução existe para todos.

Passemos às cartas, que são mais interessantes porque nelas o próprio Beethoven procura explicar a gênese da sua moléstia. A primeira é dirigida ao pastor Amenda, seu amigo. Julho de 1801. Diz êle:

"Saiba que a mais nobre parte de mim, o meu ouvido tem muito baixado.Já no tempo em que tu estavas junto de mim, eu experimentava alguns traços, mas me calava. Agora porém se tem tornado mais agudo".Ora, dizemos nós, a convivência de Amenda com Beethoven se deu entre 1798 e 1799. Nesta época pois, a moléstia já se havia instalado.Na segunda carta, Beethoven se dirige a um outro amigo, de nome Wegeler, tambem em Junho de 1801. Só há interêsse no tópico que se segue. "Já há três anos, portanto, 1798, o meu ouvido se tornou mais fraco. Isto deve ter sido por causa e estado do meu ventre, que tem sido. miserável, como tu sabias, mas que piorou aqui. Diz mais que apezar de medicamentos fortes, havia piorado e que no outono do ano precedente (1800), ele caira em grande desespero. Ordenaram-lhe banhos frios que lhe fizeram mal; depois banhos mornos que lhe fizeram bem à saúde em geral, mas que nada influiram no ouvido. No inverno de 1800, 1801, peiorara extraordináriamente dos intestinos, sofrendo cólicas terriveis. O seu médico Vering conseguiu melhorar estas cólicas, com o uso de banhos quentes e umas pílulas que receitara, além de uma infusão para os ouvidos. Diz Beethoven ter melhorado do seu estado geral, mas que os ouvidos continuavam a roncar noite e dia. Já ha dois anos que tem evitado qualquer sociedade para esconder a sua doença. No teatro, é forçado a colocar-se perto da orquestra para compreender os atores. Os sons agudos dos instrumentos e das vozes, si estou um pouco longe, não ouço. Na conversação comum, porém si se fala doce, percebo os sons e não as palavras. As vezes, nem o som nem as palavras. Mas si alguém grita perto de mim, isto me causa uma sensação insuportável ao ouvido. (Hiperacusia). Em uma outra carta para o mesmo Wegeler em Novembro de 1801, diz: "O médico Vering tratava-o com vesicatórios nos braços, o que era penível, pois que o privava do uso dele durante dois dias. Os zumbidos e ruidos haviam diminuido, principalmente no lado esquerdo, lado no qual a molestia começara. A audição porém em nada melhorara, parecendo mesmo pior. Felizmente, do intestino ando melhor". Esta segunda carta termina assim: "A minha juventude, eu o sinto, agora que começa. Desde algum tempo a minha força fisica aumenta mais que nunca e assim tambem as minhas forças de espírito. Oh, é tão belo viver mil vezes a vida!"

Seguem-se alguns trechos de interesse no testamento. Foi ele escrito em Heiligenstadt, nos arredores de Vienna, em 1802. Era dirigido aos seus irmãos Karl e Johann."Há seis anos que estou atacado de um mal incurável, agravado por médicos sem inteligência. Enganado de ano para ano, na esperança de melhoria, sou forçado emfim a considerá-lo um mal durável, sendo por isso obrigado a isolar-me e levar uma vida solitária. Quanto tempo continuarei com superioridade a estes fatos, não o sei. Não me é possível dizer aos outros: falae mais alto, gretae, pois que sou surdo. Como seria possível uma tal franqueza, sobre um sentido que deveria em mim ter um grão de perfeição maior de que o dos outros. Por isso, só procuro a sociedade quando sou em absoluto obrigado a fazê-lo. E quando o faço me deixo possuir de intensa angústia, pois que receio que reparem no meu estado. Por isso, tambem ha meio ano que tenho estado no campo, aconselhado que fui por um médico inteligente, que quer poupar o máximo possivel os meus ouvidos. Mas que humilhação, quando alguem, perto de mim, ouve uma flauta ao longe e eu nada ouço, ou ouve o canto do pastor sem que eu nada perceba. Tais acontecimentos levam-me quasi ao desespero, e por pouco teria posto fim à minha existência. Eu sei que é necessária paciência, e a tenho tomado como guia. Mas é preciso que seja uma paciência durável, até que as parcas implacáveis venham cortar o fio da minha existência. Teria coragem com 28 anos de tornar-me um filósofo? Não é fácil, porque é mais doloroso para um artista de que para os outros. Oh! Divindade, que o teu olhar baixe sobre mim! Oh! homem, ao lerdes isso, acreditae que não tendes razão! Que o infeliz se console encontrando um ser semelhante a ele, que apezar de todos os obstáculos da natureza, tem sido entretanto admitido entre os artistas e homens dignos. Vós oh! meus irmãos Karl e Johann, desde que eu morrer, se o Dr. Schmidt viver, peço em meu nome de descrever a minha moléstia, afim de que tanto quanto possível o mundo se reconcilie comigo".

Agora a autópsia, mas só o que possa interessar. Foi realizada pelo Dr. Johann Wagner no Museu Anatômico de Viena a 27 de março de 1827. Em relação aos ouvidos há: Cartilagens grossas de forma regular. Pavilhão e conchas muito espaçosos, cerca de metade maior que o comum. Suas saliências e dobras são fortemente marcadas. Conduto auditivo externo, no nivel do tímpano, espessado e coberto de escamas brilhantes. Trompa de Eustáquio muito espessada. Sua mucosa é tumefeita e um pouco estreitada ao nivel da parte óssea. Em frente aos orifícios faringianos e contra as amigdalas, ha pequenas depressões cicatriciaes. Células da apofise mastoide fortemente vascularizadas. A mesma riqueza de vascularização se nota no rochedo, com uma rede sanguínea muito acentuada, principalmente ao nível do caracol, cuja lamina se apresenta vermelha. Nervos acústicos de aspecto fino e atrofiado, sendo que o nervo do lado esquerdo é muito mais fino que o do lado direito". Nada mais pode interessar no protocolo da autopsia.

Façamos agora uma síntese de tudo, aproveitando o que houver.

I - O andamento muito lento da moléstia. Beethoven deveria ter 26 anos quando ela apareceu, ou menos. Verificasse isto pela carta ao pastor Amenda. Ha mais pontos que coincidem com ela. Lá chegaremos.

II - Ausência do fator resfriados ou anginas na anamnese histórica. De muita importancia este fato, conhecida como é a etiologia das molestias do ouvido médio. Não se encontra tal elemento nas cartas ou no testamento. Era de esperar-se encontrá-lo si Beethoven fosse sujeito. Só em 1822, no fim da sua vida, ha uma queixa de Beethoven, sobre uma bronquite com algum corrimento nasal. Além de muito tardia, esta bronquite vem assinalada com fenomenos mais sérios, com expectoração hemoptica de origem cardíaca, no começo da moléstia que o levaria ao túmulo. Como não há queixas anteriores, é de esperar-se que êle não sofresse de resfriados, pois que aos seus males intestinais, aos quaes ele ligava a surdez, êle. bem se refere, mesmo porque hipocondríaco como se tornara, com frequência se lamentava a seus amigos de males reais ou imaginários.

III - Jamais a menor referência a dores no ouvido. Praticamente não ha molestias do ouvido médio sem dores, e quasi sempre violentas. Importantíssimo esse particular da anamnese.

IV - Ausência de supuração.Também é de muito valor este informe, que aliás coincide com o precedente.

V - Não ha a menor alusão por parte de Beethoven a vertigens e tonturas. Bastante curioso mesmo, dada a enorme frequência deste sintoma em grande número de capítulos de otologia.

VI - Nada ha na autopsia sobre uma eventual perfuração ou sobre máo estado, como aderências, sinequias ou cicatrizes, seja do tímpano ou dos assículos. Nem tão pouco se alude à uma oclusão das Trompas de Eustáquio.

VII - Congestão, hiperemia da parede do labirinto na zona do caracol. Também êste fato, a nosso vêr pode ter muito significado, porque às vezes é um sinal patognomônico de certa moléstia que veremos. É verdade que é uma constatação no cadáver, mas no vivo coincide com idêntica coloração que se verifica à otoscopia.

Mas afinal, qual foi a moléstia de ouvido que ensurdeceu Beethoven?

Dizemos propositadamente moléstia de ouvido que ensurdeceu, em aparente redundância de expressão, para eliminar doenças gerais que também podem levar à surdez e que devem ser aprioristicamente eliminadas. Sarampo, escarlatina, meningite cérebro-espinal, diabetes, gôta, uremia, etc. A sífilis exige um comentário, porque é o diagnóstico de Jacobson em 1910. A nosso vêr, porém, não foi a sífilis. E' difícil aceita-la só porque Beethoven certa vez, se submeteu a um tratamento antiluético, ou porque na autópsia se constata que um dos nervos acústicos é mais fino do que o outro. Nem sempre dois nervos são bem iguais entre si a olho nu. Além disso qualquer moléstia do ouvido médio ou interno, podia, por disfunção, atrofiar um mais que outro. Aliás a sífilis tem um andamento diferente. Muito mais rápido que no caso de Beethoven. Às vezes ataca só um lado, ou um mais que outro. Em outros, se assesta só no ramo do equilíbrio, deixando a audição intacta e perfeita. Jacobson dizia mais que o gênio era portador de um espessamento do osso parietal de fundo específico, mas entretanto, com as medidas craneométricas realizadas por Weisbach e Meynert, em 1888, quando se transladaram os seus restos mortais de um cemitério para outro, nada foi assinalado neste sentido. Por isso não cremos na sífilis. Das outras causas de surdez por lesão do nervo, infecção focal, ou intoxicações, alcool, fumo ou por avitaminoses, nada se sabe, a não ser que Beethoven bebia moderadamente. Também sôbre os tóxicos medicamentosos, arsênico, quinino, salicilatos, nada se encontra de interesse.

Vejamos agora pois as hipóteses estritamente otopática.

Primeiro, o catarro crônico da Trompa de Eustáquio, otite crônica adesiva si preferirem, a mais comum e traiçoeira das causas de surdez. E' o diagnóstico de Klotz Forest, publicado na "Cronique Médicale" em maio de 1905.Há outros autores que concordam com esta opinião. A nós porém, não parece provável, porque:

I. Não coincide com a anamnese, na qual não há citação de resfriados e anginas.

II. Pela autópsia, cujo laudo não se refere a aderências, cicatrizes ou sinequias, na trompa, caixa, ossículos e timpano. Si houvesse, certamente estariam assinaladas pois que um certo estreitamento da trompa o foi.Não se fala em oclusão da mesma que seria interessante em caso positivo.

Em segunda hipótese, otite média crônica supurada. Mais improvável ainda que a primeira. Porque:

I. Nunca Beethoven teve dôres.

II. Nunca houve corrimentos.

Qualquer dêstes dois elementos seriam assinalados pelo doente, pois que até a uma queda acidental quiz êle relacionar a sua surdez.

III.A inexistência de perfuração, argumento que se articula com os precedentes. E' verdade que uma perfuração muito pequena poderia escapar ao exame. Mas uma grande, destrutiva, como seria provável, dados os 30 anos de evolução da moléstia, certamente seria assinalada.

Não nos escapou também a presença de crostas na luz do conduto, hipótese de colesteatoma, que é um tumor da epiderme invadindo às vezes o ouvido médio. Citamos porém apenas para rigor. Não há perfuração nem pús. Nem osteítes, cáries, ou necroses. Ao contrário, mucosa até muito bem vascularizada, diz o laudo.

Só nos resta pois o ouvido interno. O labirinto. Temos aí de nos deter um pouco, porque esta, a nosso vêr, seria a parte doente. Não só por isto. Divergem os diagnósticos. Uns supõem otoesclerose. Outros acreditam em labirintite. Um terceiro, já assinalado, pretende isolar a lesão no nervo. Canuyt, o mestre de Estrasburgo parece ser do primeiro grupo. Otite esclerose trófica de tipo juvenil, diz êle. Romain Rolland, aceitando a opinião de Marage, conclui por uma neurolabirintite de causa tóxica. Que Romain Rolland foi dos mais brilhantes representantes da moderna cultura francesa, não há dúvida. Que o diga Stefan Zweíg. O próprio Hitler o sabia. A prova foi jogá-lo em um campo de concentração, para premiar o seu pacifismo e o seu amor à arte e ao bom gosto. Foi representante da França no centenário da morte de Beethoven, comemorado em Viena em 1927. Ninguém pois tem mais autoridade do que êle. Sendo assim, é de estranhar-se o diagnóstico de Marage, baseado em suas obras. Em nenhum dos dois livros de Rolland sôbre Beethoven, ou no Jean Cristophe, sua obra máxima, que lhe valeu o prêmio Nobel da literatura, no qual êle se refere ao mestre com certa frequência, se encontra qualquer situação que justificasse a conclusão de Marage. Em página alguma existe ou se faz alusão a queixas ou a algum episódio referente a tonturas ou vertigens.Si houvesse fatalmente viríamos a saber. Beethoven escondeu, por bastante tempo a surdez. Mas vertigem não esconderia. E' um sintoma alarmante, insuportável e para o qual o doente procura solução imediata. Nos casos graves é forçado a manter-se no leito. Quando é branda, mesmo assim, desperta muito temor. Os doentes se arreceiam de aparecerem em público ou de andar só, pelas ruas. Dos três sintomas subjetivos das labirintites, a vertigem é aquele que mais preocupa.Da surdez, no começo, nem o doente julga bem do seu estado. Os ruídos incomodam e muito. Atormentam e desesperam, no início sobretudo, mas depois, os pacientes se ambientam e se conformam, enquanto não melhoram.Mas com a vertigem, o caso é diferente. Ela exige providências e cuidados imediatos. Eis porque não compreenderíamos tal silêncio de Beethoven, como não compreendemos o diagnóstico de Marage. E' muito difícil imaginar labirintite sem vertigem. Aliás Romain Rolland, na sua lealdade, em uma nota apêndice, não esquece de frisar que para muitos otologistas, principalmente alemães, o diagnóstico seria o otoesclerose. Frimmel é um deles.

Também é o nosso.E por que otoesclerose?

Por vários elementos que coincidem e se articulam.

I. Andamento muito lento da moléstia, começando na mocidade. Beethoven teria 25 ou 26 anos.

II. Por ter atacado os dois lados, mais ou menos simultaneamente.

III.Pela ausência do fator resfriados na anamnese sem que esta circunstância influísse favoravelmente na evolução.

IV.Pela ausência do fator supuração.

V. A hiperacusia, assinalada por Beethoven, no início da doença. Talvez também paracusia, que o doente confundisse.

VI. Pela marcha progressiva e inexorável, acompanhada de ruidos entóticos, zoadas e zumbidos.

VII.Pela ausência de lesões na caixa do tímpano e na própria membrana.

VIII. Pela congestão assinalada no caracol, como se notava na parede do labirinto, que na otoesclerose é um elemento patognomônico.

O fato de não haver citação de vertigens, nesta interpretação em nada infirma o diagnóstico. A vertigem, na otoesclerose é ligeira e bastante rara. Apenas em 10 por cento dos casos, segundo os clássicos, e mesmo assim só depois de haver fixação definitiva do estribo. E' bem verdade, não há prova histológica. Nem Gellé. E nem poderia haver. Nem se sabe de casos na família. Ainda a êste ponto voltaremos. Mas, mesmo assim não há dúvida que entre os diagnósticos presuntivos, a otoesclerose é o mais provável.
Êste é, por isso, o nosso diagnóstico.

Terminamos aqui a parte médica, com os dados que a história nos fornece, apreciando o caso clínico de Beethoven. Ficaria porém, falha e incompleta esta apreciação, si a êstes apontamentos só nos limitássemos, desprezando o contingente histórico, em episódios e passagens da vida do grande gênio, que demonstram como Beethoven reagiu às suas condições patológicas e como se adaptou a elas. Em uma palavra, como Beethoven "viveu" a sua surdez. Fatos em geral conhecidos, mas que devem ser relembrados, porque servem de incentivo, de ânimo e de consolo às novas legiões de infelizes surdos. O que fêz Miss Keller com o seu livro? Não ensinou os cegos a viver a sua cegueira? Foi também o que fêz Beethoven na sua vida extraordinária. Mas não só por este aspecto. A rememoração de certas passagens e episódios de sua vida, ao mesmo tempo que auxilia a projetar mais luz nos pontos focalizados, possibilitando mais solidez histórica, como diz Romain Rolland, permite também apreciar certos aspectos políticos e sociais daquela época, que influíram e proporcionaram tonalidades diversas ao brilho maravilhoso do seu gênio.

Por isso, em passagens rápidas, porém concatenadas, procuraremos rememorar ligeiras notícias sôbre as suas origens, o seu temperamento, as suas convicções políticas ou filosóficas ou algum episódio de interêsse imediato. Já nas suas origens há o que dizer. Prometemos voltar à otoesclerose. E' neste ponto. A otoesclerose em que pese a opinião de tratadistas e autores modernos, não é uma entidade mórbida que obedeça a um hereditarismo direto.Pode não ser encontrada nos pais ou colaterais imediatos, como foi o caso de Beethoven, sem que êste fato entretanto se contraponha ao diagnóstico. Isto porque a moléstia, apesar de ser familiar, obedece ao determinismo genético da lei de Mendel. Falha em alguns dos elementos da família, mas não perdoa a outros. Aparecem pois interesses e curiosidades genealógicas. Como apurá-las?

A família de Beethoven, pelo lado paterno, era originária de Limburg, na Flandres belga. Mais tarde aparecem outros Beethoven em Malines, velha cidade, que no século precedente dera ao mundo três excelentes músicos.Por isso, diz Ludwig, que o talento de Beethoven deve ser de origem flamenga, pois que nos ancestrais de sua mãe, alemã, ao contrário, não há citação de pendores musicais. Havia muita paz nos Países Baixos, no começo do século XVIII, mas em 1730, as guerras de Luiz XIV obrigaram muitos flamengos a emigrar para a Alemanha. Lá se casaram com mulheres alemãs. Beethoven veiu ao mundo a 16 de setembro de 1770, em Bonn. Diz Goethe que o espírito é sempre autóctono. Por isso, acrescenta Ludwig, Beethoven escreveu uma música de um homem do norte. Muito dificilmente essa música seria escrita por um homem que vivesse ao sul dos Alpes.

Muito cedo começou a estudar música, e três sonatas escreveu com 11 anos, dedicadas ao eleitor de Colônia. Com 17 seguiu para Viena, onde passaria quasi tôda a sua vida, com pequenos intervalos fora. Ainda não era, à sua chegada o "imenso Beethoven", de Berlioz, mas Mozart, a estrela polar do firmamento musical daquele tempo, muito bem vaticinou, depois de ouví-lo: "Atenção a êste rapaz. Muito dará que falar ao mundo inteiro". Todavia, Beethoven, não foi como êle, um menino prodígio. Enquanto que Mozart se exibia em Viena, na Itália, em Versailles, em Londres, com 5 ou 6 anos, a sua primeira sinfonia só aparece em 1800 com trinta, portanto. O próprio Haydn não percebeu o gênio latente do seu aluno. Talvez por isso, mais tarde Beethoven responderá a alguém que indaga, si fora aluno do papai Haydn. "Sim, respondeu. Tomei lições com Haydn, mas nunca com êle aprendi nada". Era já o seu temperamento, indômito, impetuoso que se havia de manifestar por tôda a vida, sempre em desprezo pelos excessos de delicadeza deante da realidade.
O seu gênio pois, e independência de espírito, fatalmente o levariam à admiração e fanatismo pelo liberalismo e ideal republicano. Dai a sua atração por Napoleão. Nutria êle tôdas as simpatias pelos líderes intelectuais da Alemanha daquela época, que, como tôda a mocidade se inclinavam para os novos ideais do enciclopedismo e da Revolução Francesa. "Só faltou um Danton aos alemães", diz Ludwig.
Na opinião de Beethoven, "perfeição de governo, hó havia da Inglaterra. Os ingleses, dizia êle, têm a cabeça bem plantada entre os seus ombros, mas entretanto se mantém entrincheirados no seu egoísmo. E acrescentava. Só os franceses são capazes do sacrifício da própria vida para espalhar pelo mundo o ideal de emancipação e liberdade". Compreende-se assim muito bem a sua atitude em face de Napoleão, já instalado em Schonnebrun, depois de Austerlitz. Interpelado por um emissário pouco diplomata, enviado por Francisco II, responde o Petit Caporal: "La Republique Française est en Europe le soleil dans l'horizon. Elle na pas bésoin d'être réconnue". Beethoven inflama-se com esta resposta. Ries, o seu aluno dileto, nota que o mestre anda muito ocupado. E' uma nova sinfonia, a terceira, a Heróica, dedicada a Napoleão. Estamos em 1803. Em 1804 estourou a grande bomba. Napoleão forçou o Consulado.O Petit Caporal é agora Imperador, e o próprio Papa virá a Paris coroá-lo. Beethoven não pode mostrar-se mais decepcionado. Ergue-se em tremenda indignação. Rasga a dedicatória da terceira sinfonia e em seu lugar escreve: "Para a memória daquele que seria um grande homem".

Todavia, pondera Herriot, convém saber, que passada a grande tormenta das guerras do Primeiro Império, depois de assinados o Congresso de Viena e a Santa Aliança, Beethoven se havia reconciliado com o Imperador. E' fato também histórico, pois que em 1820, um ano antes da morte de Napoleão em Santa Helena, escrevia o autor da Sinfonia Heróica: "Si Napoleão voltasse agora, êle poderia ter a certeza do melhor acolhimento em tôda a Europa. Ele conhecia o espírito do seu tempo,.e soube muito bem controlá-lo. Os seus descendentes saberão faze-lo apreciar. Como alemão, eu fui e sou o seu maior inimigo, mas as condições atuais me levaram a reconciliar-me com êle. A fé nos compromissos jurados e a confiança não existem mais. A sua palavra tinha outro valor. Ele tinha o sentimento das artes e das ciências, e detestava as trevas. Poderia então apreciar melhor os alemães e proteger os seus direitos. Nos seus últimos tempos estava rodeado de traidores. Os filhos da grande revolução precisavam do seu temperamento de ferro. Èlle arruinou em tôda a parte o regime feudal.Ele poderia ter dado paz ao mundo, boas leis e não querer mais conquistas. Foi o cúmulo da fortuna, e por excesso de orgulho, o cúmulo do infortúnio."

E' muito curioso que Beethoven tenha escrito tais coisas sôbre Napoleão: excesso de orgulho e cúmulo de infortúnio. O gênio atrai o gênio, e por isso êles se compreenderam tão bem. E muito conhecido um episódio histórico, que se segue. Beethoven passeia em companhia de um outro imortal.Desta vez é Goethe, que também teve aproximação do imperador dos franceses, em uma entrevista que ficou célebre. O mesmo Goethe que disse em Valmy, como correspondente de guerra, em meio das tropas prussianas derrotadas e em retirada: "Neste instante começará uma nova era para a humanidade". Encontram-se os dois, Goethe e Beethoven, no citado passeio com o arquiduque de Weimar. Enquanto que o autor do "Fausto" se curva reverentemente, Beethoven passa sem nem siquer tocar no chapéu. Excesso de orgulho e por isso sofrimento. Há quem diga ser lenda tal episódio. Mas há também quem acredite, porque com outros se confunde. E' sabido, que Beethoven, em Viena, morava no palácio do Príncipe Lichnovsky, que era muito amigo seu. Mais que isso, protetor. Aconteceu que em resultado da ocupação da Áustria, o príncipe se viu forçado a dar alojamento a alguns oficiais franceses no seu palácio. Quais eram as verdadeiras relações de Lichnovsky com êstes oficiais não o sabemos. Parece porém que não eram de todo más. A prova está em que pediu a Beethoven que tocasse para êstes soldados. Éste episódio faz lembrar uma observação de Tolstoi em um dos seus livros. Na sua opinião, o maior inimigo da Inglaterra não era Napoleão mas sim o eram as populações dos paises submetidos que não tinham pressa alguma em pôr os franceses para fora, contaminados pelos ideais da revolução que traziam nas baionetas ou sedusidos pelo espírito dos gauleses. Pois apesar do pedido, Beethoven recusou-se a tocar para os oficiais e como o príncipe insistisse, retirou-se espetacularmente. Mandado um emissário à sua procura com ordens de objetar-lhe que o próprio príncipe lhe fazia vêr que êle mesmo não se tinha negado, apesar de sua posição, respondeu Beethoven: "Príncipe, o que sois, deveis ao acaso, ao nascimento. O que sou, devo a mim mesmo. Príncipes houve, e ainda haverá muitos. Beethoven porém, não há senão um só".

Dotado de tal temperamento que revela tanto amor próprio e orgulho, é de imaginar-se o que foi o sofrimento dêste homem extraordinário, quando se viu atacado pela fatalidade da surdez. No próprio testamento que lemos, se percebe: "Quando apareço em um meio social, sou possuído de intensa angústia, pois receio que reparem no meu estado". O espantoso está, pois, no fato de que a doença causou muito mais impressão no homem social do que no músico, justamente em resultado do seu orgulho e vaidade. "Eu sou o poeta do som, diria certa vez". Mas quem de nós escapará à vaidade? Já Pascal advertia em um dos seus Pensées: "Lã vanité est si ancrée dans lê coeur de l'homme, qu'un soldat, un goujat, un crocheteur, un cuisinier se vante et veut avoir dês admirateurs. Et lês philosophes mêmes en veulent". Assim êle próprio, Pascal, confessa não poder escapar. Eis porque Beethoven nega que tivesse aprendido qualquer coisa com Haydn, apesar de ser evidente a influência dêsse último na Primeira Sinfonia, mesmo para nós, ou a outros diletantes e apenas apreciadores de música. E' evidente, os gênios não plageam, diz Ludwig. Contudo, acrescenta êle, podem receber a inspiração amoldada pelos seus antecessores, para depois passarem generosamente à posteridade o seu próprio manancial.

Nas suas longas cartas, Beethoven sé queixa de separar-se dos amigos, de ter de renunciar à conversação, mas principalmente sofre pelos preconceitos que se formulem contra a sua obra, uma vez que se não pode confiar em um músico surdo. Na realidade, porém nunca manifestou receio de perder os seus dotes de compositor ou de virtuose, e com efeito, por um verdadeiro milagre, as suas obras se tornaram cada vez mais gloriosas, à medida que a surdez aumentava. Nem uma só peça, nem um simples compasso dá a impressão que o incomparável mestre não pudesse ouvir, diz um de seus biógrafos. "Hei de agarrar o destino pela garganta" disse Beethoven um dia. E de fato o agarrou.

Quanto mais progredia a surdez, menos êle se sentia perturbado. E' sabido, e êle o confessa que, no princípio da moléstia, tudo fêz para esconde-la. E conseguiu-o."Um dia de verão, porém, saira a passeio com o seu aluno Ries, pelas florestas dos arredores de Viena. Não longe deles um pastor tocava em sua flauta, uma bela melodia. Ries chamou a atenção do mestre para as belas notas, mas Beethoven lhe disse nada ter ouvido. Pararam duas ou três vezes mais. Depois continuaram. Apesar de Ries lhe afirmar que a flauta já silenciara, Beethoven mostrou-se extraordinariamente quieto e triste. Em que pensava êle?Na Sonata de Kreutzer? No quarto concerto de piano com orquestra? E' duvidoso, talvez mesmo ainda não os tivesse composto, mas, por certo, não seria a Quinta Sinfonia.

Um busto realizado por Klein, reflete então o seu semblante, com a cabeça um tanto assimétrica, tornada fascinante pela união dos dois contrastes. A testa redonda e forte como todo o crâneo, de uma espessura excepcional, como ficou demonstrado depois de sua morte. Ali a fôrça e o pensamento encontravam um campo comum. Sob as sobrancelhas espessas, um nariz curto e largo. As faces proeminentes acentuam a expressão leonina, reforçada pelos dentes salientes e a extranha dimensão das gengivas. A bôca e o queixo dão uma impressão irregular, por causa de um profundo sulco entre a boca e o nariz e também pela desigualdade do lado direito do queixo, que parece empurrar para frente o lado esquerdo. Os sulcos dão uma impressão mais forte devido aos lábios finos, inclinados para baixo. E' extranho que as suas orelhas sejam de pouco interêsse, ao passo que as de Mozart eram um milagre de beleza. Mas o colorido da expressão, que o busto não revela, tornavam a cabeça quasi sinistra, pois êle era moreno escuro, e parecia quasi negro, quando não estava barbeado. Tinha marcas pardas de bexiga e todo o rosto emoldurado em uma sombra de barba escura. A expressão dos olhos cinzentos parece às vezes dirigido para o além, e muitos contemporaneos descrevem o seu olhar como penetrante. Também dizem êstes que sempre que Beethoven estava calado, franzia a testa e parecia tão sombrio que facilmente atemorizava as pessôas".

Com êste físico pois, deveria ser um homem talhado a afrontar o destino com vantagem, e de fato o afrontou com a sua fôrça, virilidade e coragem. Não sabemos bem porém, o que Beethoven entendia por destino. Qual era a sua metafísica. Que era um crente, no sentido teista, não há dúvida, mas não se sabe bem qual seria o seu Deus. Escreveu um dia "Gott über alles". E' bem verdade que dizia serem Jesus e Sócrates os seus modelos, mas, em Kallemberg fêz a seguinte invocação: "Todo Poderoso dos bosques. Nos bosques sou abençoado e feliz. Cada árvore fala de ti.Oh Deus, que grandeza há nestas paragens. Há paz nas colinas, para servir a Ti". Êste trecho faz lembrar o adágio da Pastoral. "Éste adágio, dizia Beethoven, apenas deve proporcionar lembranças da vida no campo; o compositor deixa ao auditório o direito de imaginar o que quiser. Tôda a composição descritiva perde de valor quando vem marcada demais pela música".Imaginemos nós pois, o bosque, as árvores, a frescura, o canto do rouxinol e do cuco. Mas não só isto interessa. Há outro aspecto. "Cada árvore fala de ti". Mais uma vez se nota a sua afinidade com Goethe. Basta copiar um pedacinho do último, quando deixava uma casinha de campo para ir morar em outra, na cidade, o que não conseguiu fazer sem muita pena e emoção. Diz neste momento o gênio de Weimar: "Cada rosa me dizia: queres então nos abandonar?".Diz um de seus biógrafos que Goethe se separava de um ente humano com menos dificuldade de que das árvores plantadas na sua casa de campo.

De qualquer modo porém, mesmo que nos seja confusa a idéia de Deus no espírito de Beethoven, ou que êle se não dissesse cristão, mas apenas um teista, fato é que no seu modo de viver a vida, êle obedecia aos ditames do verdadeiro cristianismo, como o provam a sua bondade emoldurada em um temperamento altivo, embora violento, como as suas atitudes em relação aos semelhantes. Foi o que se deu com o seu sobrinho. E' sabido que Beethoven, em seus últimos anos tinha a firme intenção de ir à Inglaterra. Vejamos. "Sempre tive intenso desejo de ir para a França, até a França ter um imperador. Agora êsse desejo me abandonou. Gostaria apenas de ouvir as sinfonias de Mozart em Paris, pois ouvi dizer que em lugar algum são tão bem tocadas como no Conservatoire. (Parêntesis nosso: Wagner tinha também impressão semelhante). Continua: Mas sou pobre demais para fazer tal viagem só por êste motivo. Tinha também vontade de ir para Londres. Eu sabia dos sucessos de Handeln e Haydn nos salões da Inglaterra, e já possuía economias para êsse fim. Fui porém obrigado a gastar êsse dinheiro para acudir às necessidades do meu sobrinho Karl". Pois êste mesmo Karl provocoulhe as maiores decepções. Primeiro, foi uma luta interminável com a sua cunhada, cujo comportamento Beethoven reprovava.Demais, queria defender a moral do filho do seu falecido irmão. Depois, foi vítima do próprio menino já moço, das maiores ingratidões. Pois apezar disto, esgotou as suas economias com êle.E a sua música, a sua divina música, corresponde bem ao seu comportamento na vida, à moral do cristianismo e à solidariedade humana. Diz Herriot, sôbre a missa em Ré: "Que a acentuação destas páginas seja inspirada por uma fé sincera, não se pode demonstrar. Mas não há dúvida que esta missa fala ao coração de todos os sofredores. A queixa de Beethoven que se revela nas últimas sonatas e que se refere aos seus próprios sofrimentos, nesta música, ao contrário se estende a todos os seus irmãos de miséria". E' um pensamento de Herriot que coincide admiravelmente bem com outro, de Romain Rolland: "Beethoven, por meio da sua música, ensina a afrontar a vida com qualquer sofrimento".

Muitos médicos trataram de aliviar êstes sofrimentos. Houve alguns que bastante se comoveram e a Beethoven se dedicaram não obstante as suas queixas e irreverências das suas cartas, que devem ser perdoadas e relevadas. Não só pelo Cristianismo. Pela sua desdita e tristeza! Pela sua personalidade, pelo precioso legado que deixou aos amantes da verdadeira música! Primeiro foi o Dr. Schmidt. Fêz êle todos os esforços para melhorá-lo. Fizeram-se amigos íntimos. Beethoven dedicou-lhe o trio 38, como prova de amizade e gratidão. Foi a êle que pediu o gênio que fizesse a sua observação clínica para ser conhecida depois de sua morte. Mas êste médico amigo morreu muito antes dele. Procura então o Dr. Malfatti, depois o Dr. Bertollini, dos quais pouco sabemos, menos que foram em vão os seus esforços. E compreendemos que deveriam ser. 4 próprio médico da côrte imperial Dr. Standenheimer, também foi ouvido e sem proveito. Além do empirismo terapêutico daquela época, acontecia que Beethoven era um doente muito difícil de tratar-se. Excessivamente céptico. Incrédulo. Havia na Igreja de Santo Estevão, a nobre catedral gótica de Viena, um frade que gozava de muita fama em curas de surdez. Beethoven procurou-o. Como acontecia que a ordem não permitia ao religioso que fosse a domicílio, mesmo porque não era médico, foi o bastante para que Beethoven se indignasse e abandonasse tudo, apesar de haver promessas de melhora.

Verificando o mestre que infelizmente o sofrimento aumentava dia a dia, pelo fracasso da medicina e da terapêutica, à medida que a surdez inexoravelmente o isolava do mundo, resolvido que estava a segurar o destino pela garganta, começou a lançar mão de todos os artifícios. A condução aérea do som quasi desaparecera mas restava ainda a óssea, pelo menos em parte. A princípio, com uma simples varinha de madeira, que encostava ao piano e aos ossos do crâneo ou a segurava com os dentes. Depois, por muito precário êste sistema, um dos seus amigos, Streicher, construtor de pianos, fabricou-lhe um porta-voz. Estão em Bonn, no Museu de Beethoven, êstes apetrechos e mais um último, fabricado por um certo Maelzel, mecânico, que imaginou um outro aparelho ampliador e receptor. Esse homem chegou mesmo a ir a Londres em 1814 para demonstrar o seu invento, chamado por êle Panharmônica. Era uma trombeta receptora, com a qual pretendia ter melhorado a situação do grande gênio.

Já neste ano, 1814, Beethoven estava praticamente surdo. Conversava sempre com o auxílio de um caderno e um lapis que nunca abandonava. Inteligente como era, aprendeu logo a leitura labial, mas existem em um museu de Berlim nada menos de 11.000 páginas conservadas de suas conversações por escrito. Certa vez, visitava Beethoven um seu amigo de nome Czerny, também muito surdo como êle. O pai de Czerny, clássico de métodos de piano, que muito bem conhecemos ainda hoje. Pensavam conversar os dois, quando na realidade apenas o tentavam, referindo-se a um objeto ou a um imóvel, através de uma janela. Repentinamente Beethoven percebeu que cada um se referia a um objeto diferente do outro. Talvez mesmo à própria janela. O que um dizia nada tinha a vêr com o assunto a que o outro se referia. Beethoven mesmo não resistiu. Riu-se a mais não poder. Tomou logo o chapéu e foi-se embora rindo, depois de gritar para Czerny: "Mas também que idéia.Dois surdos querendo uma coisa contar um ao outro".Berlioz tinha bem razão. Que espírito admirável! Mas não só Berlioz. A humanidade tôda!

Mas ficaria Beethoven totalmente surdo? Há quem diga que sim. Outros que não. Um viajante inglês que o visitou, um certo Russel, suscita alguma dúvida. Talvez, por muito surdo que fosse, não seria um caso de cofose, isto é, surdez, completa e total. Todavia, muita reserva é necessária. Disse o inglês que por vezes Beethoven se queixava de que o piano estava desafinado; em outras, usava tanto a surdina, que nada mais se ouvia. Isto em 1815, quando êle não mais tocava em público. Apesar de discordarmos de Marage, quanto ao verdadeiro tipo de lesão, não deixamos de apreciar a variante fisiopatológica que imaginou no caso de Beethoven. Escrevia êle em 1910. "Êste tipo de surdez, tem isso de particular, que se por um lado afasta o doente do mundo exterior, quer dizer, de tudo o que possa influenciar a produção de origem externa, por outro, ao contrário, tem a vantagem de manter os centros cerebrais em estado de hiperexcitação, produzindo os sons musicais e ruidos que Beethoven ouvia com tanta intensidade. Aliás êle mesmo se referia a uma sensação desagradável, quando alguém gritava, no começo da moléstia. E' a hiperacusia interna. Baseando-nos nesta opinião de Marage, podemos nós imaginar duas hipóteses para o fato maravilhoso de Beethoven compor apesar de surdo. A primeira será que êle tinha uma memória musical espantosa, de modo a rememorar tôdas as sensações que as notas e acordes lhe causavam no tampo que êle ouvia, e que o seu gênio desenvolvia prodigiosamente a seu gosto. A segunda, seria admitir que houvesse uma ou outra ilha sonora, no ouvido de Beethoven. Não é um fato tão raro em otologia permanecerem intactos grupos de notas de alguma gama. Ainda aqui o gênio de Beethoven teria fôrças para aproveitar algum reliquat que ficasse da audição, restos êsses completamente perdidos e impraticáveis na vida de relação. A idéia é nossa. Não a lemos, mas sabemos que há uma tese da Universidade de Paris sôbre êste assunto.

Canuyt porém pensa de maneira totalmente outra. Mas como, um surdo que escreve a Nona Sinfonia? Para êle é fácil. Diz ser um pensamento errado supor-se que para compor uma obra musical seja preciso toca-la ao instrumento e ouvi-la. Que o contrário é bem provado. Assim como um músico pode ler uma partitura de começo ao fim sem tocá-la, também o compositor, pode gerar a sua obra, ouvi-la, representa-la mentalmente e escrevê-la sem necessidade do instrumento. Todavia, continua Canuyt, é bem certo que muitas vezes, ao contrário, o compositor pensando no efeito que vai produzir, serve-se do ouvido para apreciá-la, ao mesmo tempo que, o que vai tocando, influencia em eventual outro sentido os seus próprios centros cerebrais. De qualquer modo, o ouvido não tem senão um papel secundário em relação à corticalidade cerebral, afirma Canuyt, pois que é a imaginação que gera a arte. Neste ponto paramos, apesar de muito sedutor. Já é psiquiatria, filosofia da arte. Assunto belíssimo, principalmente para quem descrê de Freud. O que Canuyt diz deve ser verdade. Há porém uma objeção. Não nossa, mas de Ries, o aluno dileto já conhecido. Que o mestre, enchia as pautas, escrevia e tocava muitas vezes, antes de dar a forma definitiva às suas obras. Pelo menos no tempo em que era moço.

Romain Rolland (a todo instante tornamos a citá-lo e com prazer), tem um outro pensamento sôbre o assunto. Depois de estudar as condições anátomo-patológicas da autópsia em colaboração com Marage, êle diz que a situação de Beethoven resultou de uma surmenage auditiva e intelectual, perfeitamente comparável a um estado de hipnose, descrita pelos orientais. Êste estado é conhecido na Índia pelo nome de Ioga e atribuido ao esforço de uma grande concentração espiritual, como se verifica, a seu vêr, no êstase religioso. Rolland faz Esta comparação, sem entrar propriamente no mecanismo psicológico da prodigiosa produção musical de Beethoven. Mas para êle, seria neste estado, comparável a esta Ioga, do misticismo da Índia, durante o qual o paciente se torna independente dos sentidos e da vida de relação, que se lhe aflorariam ao consciente as suas inspirações.

Disse um dia Georges Sand: "Existem gênios verdadeiramente infelizes, aos quais falta a expressão e que levam para o túmulo o segredo de suas meditações". E por que tal pensamento? Não parece referir-se ela, em idéia contraste, ao grande gênio surdo? Ao milagre espantoso do seu poder de reação? E nos seus melhores tempos de convívio com Chopin, na ternura das valsas e encanto dos noturnos?! Nas cambiantes de inspiração do imortal romântico?

"E' próprio do gênio forçar em seu proveito tudo o que constitue ou que deforma a sua natureza, as suas fôrças como as suas fraquezas e até mesmo as suas moléstias". Romain Rolland disse isto. Nós o copiamos traduzindo, e compreendemos o que disse Georges Sand. Rolland refere-se a Beethoven. À sua vida, à sua surdez. Depois, prossegue. Nós porém, paramos um instante. Há interesse nisso, talvez mesmo um dever. Também em nossa terra já houve um caso assim! Não com um músico. Nem celebridade. Um Beethoven, um Chopin, um Bach ou um Mozart. Nem Carlos Gomes! Ao contrário, humilde, desconhecido, mesmo no Brasil. Mas devemos relembrá-lo! Como Beethoven, segurou, pela garganta, o seu destino! Também sentiu o vento da desgraça e da desdita! A moléstia implacável. Não a surdez, porque peior! A lepra. O Aleijadinho! Perdido em sua terra, anônimo, sem mestre que o ensinasse e o completasse. Esculpia, porém, por intuição, talento, genialidade! Nunca saiu de Minas. Nem à Côrte foi, como Beethoven, a Paris e Londres. Recursos não houve, para um e para outro. Um dia, surge a lepra, como a Beethoven a surdez. Não desanima, porém, e como êle, continua a trabalhar. A esculpir! A moléstia é, porém, inexorável. Não perdoa e a sua marcha continua. Desafia a medicina e a terapêutica. Em um e em outro caso. Nem mais, nem menos!

Um não ouve, a doença não permite, mas compõe. A terceira sinfonia, a quinta, a nona, verdadeiras catedrais do pensamento musical! O outro não sente, nem o cinzel entre os seus dedos, pois que a moléstia o tacto apagou! Mas esculpe, constrói, as suas igrejas e capelas. Ouro Prêto, São João Del Rey, Congonhas do Campo! Um, a imortalidade! O outro, a humildade! Ambos gênios porém! Il est propre du génie! ...

Em 1815 a situação ainda mais se agrava. E' então realmente dolorosa a vida de Beethoven. Desde êste ano nunca mais tocou em público.Em uma reunião, em Viena, um grupo de músicos jovens e entre êles Schubert, ocupa um canto da sala. Todos conversam alegremente. Beethoven, porém, está quieto e recolhido. Si algum dos conhecidos lhe dirige a palavra, diz Schubert, ou antes, si grita ao seu ouvido, o gênio abre os olhos como uma águia que desperta assustada. Depois, sorri, tristemente, e estende ao outro o seu caderno e um lapis.

Completamente separado assim dos homens, não encontra consolo senão na natureza. "Ninguém pode amar o campo tanto como eu", dizia. E por isso, passeava, desde manhã até a noite, sob o sol ou com chuva. Inspirando-se, tomando notas. A natureza era então a sua única confidente, dizia a Condessa Tereza de Brunswick. Esta Condessa, que assim fala, foi uma das primeiras alunas do grande gênio, logo após a sua chegada a Viena. Há quem diga que Beethoven por ela se apaixonou. Outros dizem que não. Uma amiguinha, como houve muitas, no enxame de donzelas que o rodeavam e admiravam nos aristocráticos salões de Francisco II. Era natural. Rapaz da moda, aparecendo muito, dando-se ao luxo de possuir cavalos, da "haute gomme" vienense, não é de extranhar-se que tal acontecesse. Chegou até a compor um ballet para ,os imperiais salões. Tão sensível à arte e à estética, fatalmente Beethoven se inflamaria com as beldades que o rodeavam. E apesar de feio, com bexigas no rosto, vulgar fisicamente, atarracado e surdo, poucas mulheres conseguiam escapar ao encanto e à fascinação do seu gênio. Tôdas elas, de espírito, intelectuais, românticas ou realistas sentiam uma atração que não podiam ou não queriam frenar ou reprimir. Conta isso muito bem Hevesy em um seu livro. Pelas cartas publicadas, cartas íntimas, se percebe que Beethoven era tratado como um anjo. Por seu lado é bem certo que o mestre se preocupava muito com o problema do casamento. Sonhava com uma companheira para sempre. São suas estas palavras: "Êste terrível quarto andar! Oh Deus, que vida, sem ninguém para amar"! Afinal, si era pobre e surdo, podia com uma companheira, repartir a sua fama e glória. E a imortalidade também! Ele, porém, mantinha-se discreto. Recatado. "Ein Mensch, ein Wort", era um homem, uma palavra, era a sua divisa.

Muitas mulheres aparecem assim na vida de Beethoven. Umas, de longe. Outras mais perto, como a condessa de Brunswick. Algumas terá de fato amado. Outras, quiseram ser amadas. Outras ainda, Beethoven amou sem perceber. Madame Bigot foi uma delas. Dizem que era muito linda e fascinante. E bem casada! Um talento para o piano, executando as suas sonatas muito ao prazer de Beethoven. O próprio Haydn havia chamado a atenção do professor para o gosto e a técnica da aluna. Beethoven pois entusiasmou-se em aprimorá-los. A técnica e o gôsto! Só isso! Mas parece que inadvertidamente se aproximou demais! Pelo menos se suspeita por uma carta. Parou, porém, onde tinha que parar. E continuou amigo do casal francês! Nunca perdoou a Mozart ter escrito o Don Juan. Profanou a sua arte, dizia êle!

Em 1812 aparece a famosa "Carta à Imortal Bem Amada". Quem foi ela? Não se sabe ao certo, é o que pensa Herriot. Romain Rolland diz ser a própria Tereza de Brunswick, e prometera um livro-inquérito sôbre êste delicioso enigma. Sois vós, encantadora Améria Sebald, pergunta Vincent d'Indy, ou será Raquel Levin que o mestre conhecera em Teplitz?

Qualquer que seja porém a Imortal Bem Amada, a carta, não menos que a Sonata Apassionata, exprime a intensidade do seu grande amor. Julgam alguns ser Julieta Guicciardi, a quem Beethoven dedicara o adágio sublime da Sonata ao Luar. E' possível, mas as datas não coincidem. A bela veneziana tinha apenas chegado da Itália, quando Beethoven a conheceu. Julieta tinha só 14 anos, mas a outra Julieta, aquela de Verona, era também da mesma idade! O apaixonado Romeu, sim, era um pouco diferente! Beethoven andava em 35. Fosse ou não a imortal amada, foi violenta a paixão. De um e de outro. E' histórico. O destino, porém, sarcástico, não perdoava. Julieta não se uniu a Beethoven, para se casar mais tarde com um outro, músico também, porém, medíocre, sem nome ou credenciais, o Conde Galenberg. Compreendemos assim, melhor, Beethoven! A sua sorte, o seu destino, e por isso, a sua música!E porque o seu sentimento é tão profundo!

"A ópera não é do meu feitio, dizia o grande mestre. Si eu escrevesse uma partitura, de acôrdo com os meus próprios instintos, ninguém poderia ouví-la, porque eu não poria nem pequenas áreas nem duetos. Nada que fosse da bagagem que serve de convenção para "fabricar" uma ópera.

De fato, são pouquíssimas as óperas escritas por Beethoven, mas em 1822, já em período adiantadíssimo da moléstia, foi ainda reger uma vez a sua "Fidelio". Deu-se então um episódio verdadeiramente trágico, devido às suas condições. Era a primeira vez que regia depois de oito anos de interrupção, causada pela surdez. A ouverture correu mais ou menos sem incidente, apesar de Umlauf, o regente oficial, ser obrigado a melhorar as ordens da batuta de Beethoven, em uma posição discretamente colocada. No primeiro ato; porém, durante um dueto, que vimos êle não apreciar, a situação se tornou irremediável, porque Beethoven nada ouvia dos atores. Por isto, retardava consideravelmente o movimento. Assim, enquanto que a orquestra obedecia ao seu bastão, os cantores, por sua conta já estavam muito adeantados. Em resultado, tumulto e confusão. Lamentável! Ouviam-se portas que batiam, de assistentes intolerantes que se retiravam em protesto. Afinal, parou-se o dueto, como única solução, afim de recomeça-lo sob a regência de Umlauf. Ninguém porém tinha coragem de dizer a Beethoven a realidade. "Retira-te infeliz, não estás mais em condições de reger". Nem Umlauf, nem Dupont, nem o mestre da Capela, eram capazes de uma franqueza tão rudemente triste. Por fim, um seu amigo chegado, de nome Schindler, toma de um lápis e dolorosamente escreve no caderno de Beethoven: "Eu lhe peço que não continue. Em casa explicarei porque". Beethoven entregou a batuta e retirou-se incontinenti. Mais tarde, foi encontrado caído em um divan, com o rosto coberto pelas mãos. Não é possível se imaginarem maior tristeza e prostração moral. Foi em novembro de 1822. O acidente entristeceu-o até a morte. Quaisquer que fossem as suas contrariedades, os sofrimentos físicos ou morais que êle experimentasse, não conseguiam êstes abatê-los senão temporariamente. Com tôda a presteza reagia, refugiando-se na sua genialidade e no alegro final da quinta sinfonia. Diz Rezende Martins que neste trecho se percebem as trevas em busca da luz. Beethoven exprime então tôdas as lutas, as fraquezas e as revoltas da energia humana, até que por um último esfôrço de vontade, luta ainda nos últimos momentos de suprema agonia. A noite do "Fidelio" amargurou-o, porém, para sempre.

Mas mesmo assim continuou lutando, e ainda não eram passados dois anos, a 7 de maio de 1824, outra vez empunha o bastão da regência. E se imagine o que! A nona sinfonia! Foi no têrmo da vida, quando já esgotado o cálice de amarguras, que êle fêz entoar pela voz do homem, o canto da Alegria, um canto do cisne, avassalador e radiante.

O público vienense, conta Karl Holtz, aplaudia delirante e comovidamente. Os próprios executantes tinham os olhos marejados de lágrimas. A emoção era geral. Beethoven, terminado o adágio, continuava imóvel, até que Umlauf, outra vez presente, com um movimento o convida a voltar-se para mostrar-lhe o entusiasmo da sala. Beethoven olhou em redor de si, muito calmo e inclinou-se. Que se imagine a concentração dêste auditório, onde se encontravam os seus melhores amigos, aqueles que conheciam bem as misérias da sua vida, ao ouvirem a sua última meditação sinfônica, quando, diz Herriot, o patético adágio a 4 tempos em Si bemol, que uma modulação da clarineta transforma em andante em Re maior, dá à paixão um encanto de fantasia e de sonho. Como se fosse um bouquet de melodias enlaçadas pelo favor do gênio, e cujas notas finais nos levam a um profundo recolhimento! Beethoven porém não ouvira os aplausos. O público redobrava de acenos e palmas. Tudo em delírio. Mas o gênio cai em prantos e soluços!

Que homem espantoso êste imenso Beethoven de Berlioz! Um pobre infeliz, enfermo, solitário, a quem o mundo se obstina em recusar a felicidade, tem ainda fôrças para encorajar os seus semelhantes, vazando a sua alma em um Hino à Alegria!

Um ano depois desta apoteose e consagração, em 1825, Beethoven adoece gravemente. Seria o começo do fim. Foi uma congestão pulmonar, dizem uns, com muita febre, abatimento, expectoração sanguinolenta, e epistaxis. Outros julgam êstes últimos sintomas como fatores já cardíacos, ligados à cirrose hepática. Mas sarou. Melhorou muito, pelo menos. 1826 foi até um ano quasi todo bom, em casa de um irmão, no campo. O inverno de 26 para 27, foi, porém, muito duro e rude em Viena. Aquele começo, antes do Natal, que muitos de nós conhecemos, pior que os meses que ainda vêm. Pouca neve, mas uma chuva fria que não passa. Um vento gelado, insuportável, que vem da Rússia, e varre o Ring de avenidas desde a Votiv Kirch até o Danúbio e o Prater. Foi em um dia assim que chegava Beethoven de viagem. Viagem que tratara de interêsses do sobrinho.O protegido, que conhecemos. Já vinha doente, com dores e pontadas. Por isso se recolhe ao leito dizendo a Karl que fosse em busca do seu médico. O moço sai. Mas não volta. Quanta razão tem Victor Hugo! A pressa do homem em ser ingrato! Só dois dias depois aparece com o médico. Desculpando-se, havia esquecido por completo do pedido! A situação é grave. Sintomas pulmonares, outra vez, agora com derrame, além de fenômenos bem claros de insuficiência hepática. A pleuresia é puncionada 3 ou 4 vezes, punções que o aliviam temporariamente. Opressão, cansaço e falta de ar. E assim é todo o inverno. Contudo, quando melhora o pulso, entre uma e outra dispnéa, reforma e corrige o testamento de Heiligenstadt, que conhecemos. O sobrinho displicente que o esquecera, passa ser seu herdeiro universal! Também êle esquecera, porque perdoara! Eis porque dissemos não compreende-lo, nem às suas crenças metafísicas. Não obstante as suas invocações aos numes tutelares dos bosques e pastorais, serão possíveis mais renúncia e amor ao próximo, do mais puro e nobre cristianismo?

24 de março. Foi-se o inverno. Começa a primavera! Beethoven piora e muito. A prostração é imensa. E' atroz a dispnéia. A 25, pulso fraco, já cheio de aritmias. Entra em coma. Agoniza, francamente. À noite é horrível, mas ainda luta e se percebe o presto da quinta sinfonia! Depois uma pausa grande e prolongada. Março 26. Vai-se ouvir o adágio muito lento da terceira. Morreu Beethoven. Tombou o gigante! O gênio sublimou-se. Procura o clima, que para êle era tão próprio. A imortalidade!

Tôda a Viena o acompanhou ao Campo Santo. Schubert, entre os amigos, ouve consternado, o que diz Grilpazer, um outro deles. "Aquele que choramos não era só um artista.Morreu também um homem! "Difícil mais eloquência em tão poucas palavras! Quem mais foi homem que Beethoven? Quem mais dignificou a nossa espécie?

Existe qualquer cousa de misterioso e de divino nas doenças, disse Hipócrates. Quid divinum. Qual o verdadeiro sentido destas palavras não se percebe bem. Si na própria essência, no conteúdo psíquico ou somático do conceito de moléstia, ou si no plano divino da creação, em obediência a desígnios de Deus. Estaria a doença de Beethoven envolvida em tal enigma?

Em um dos seus "Promenades dans Rome", Sthendal, deslumbrado com as maravilhas da Renascença Italiana, quando em visita às Galerias do Vaticano, teve um pensamento inesquecível. "Quelle dommage qui Raphael n'ait pas peint les tragédies de Shakespeare!" De fato, foi uma grande lástima que tal acontecesse. Que outros quadros mais teria juntado às suas obras primas! Podemos apenas imaginar. O que seria o suicídio dos jovens amantes veronenses em uma tela de Raphael?! Sthendal tinha pois, muito razão!

Um outro pensamento agora. Diferente, mas também pode ocorrer. Beethoven, sem a sua histórica surdez! Seria êle o mesmo gênio? Sem que o destino o desafiasse! Sem que a doença o acometesse, exigindo a admiravel reação a que assistimos! Sem que a desgraça o entristecesse, mas fazendo-lhe despertar, em sua defesa, todas as fôrças latentes do potencial espantoso do seu gênio! Legaria à posteridade todo o esplendor do seu maravilhoso espólio musical? Seria o mesmo Beethoven? Não o sabemos! Conjecturas, como também conjecturou Sthendal, noutro sentido. Mas há interêsse nelas! Parece haver êsse quê de misterioso na surdez e sofrimento de Beethoven. Êsse Quid divinum de que falou Hipócrates!

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