Versão Inglês

Ano:  1951  Vol. 19   Ed. 3  - Maio - Junho - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 35 a 52

 

Comentarios sobre o passado, o presente e o futuro acerca do tratamento cirurgico da Otoesclerose (1)

Autor(es): RAUL DAVID DE SANSON (2)

O estudo das muitas questões que atormentam a humanidade tem intermitentemente os seus agitadores, cujo espírito, ora criador, ilumina e conduz a novos rumos, por vezes com reais e retumbantes sucessos, ora pesquizador, procura com originais processos de técnica (inovações), alcançar a solução de problemas já formulados e especulados por outros, que não puderam, entretanto, dirimir dúvidas ou incertezas.

Cultivando a especialidade com amôr e dedicação há mais de quarenta anos, sempre vigilante e atento na análise de seus problemas, tendo procurado definir os seus limites e imprimir-lhe, desde 1933, a sua justa e precisa orientação, sem espirito negativista e dentro da justa medida tivemos a oportunidade de observar, nesta longa jornada profissional, como, por vezes, em determinadas épocas, se alvoroçaram as opiniões ao entrever-se a possibilidade de uma solução definitiva para o tratamento de certas enfermidades. Assim sucedeu, por exemplo, com o tratamento cirúrgico da surdes, cuja primeira e real tentativa, com enorme repercussão nos meios científicos, foi realizada por Kessel em 1876, quando procurou restituir a mobilidade da platina do estribo anquilosado através de uma timpanectomia, ossiculectomia e secção do músculo estapédio, chegando, posteriormente a executar a extração do estribo.

Em 1896, Alderstron foi o primeiro a executar a fenestração, perfurando a platina do estribo por meio de uma broca acionada por motor de dentista.

Em 1897, Passow levou a efeito a perfuração elétrica do promontório por via retro-auricular.

Em 1910, Bárány, na Clínica de Politzer, pela primeira vez trepanou o canal semi-circular posterior, por via ante-sinusal, sem abrir o ântro, expondo e levantando a dura-mater, que iria recobrir o orifício trepanado.

Em 1913, Jenkins trepanou o canal horizontal e abriu o espaço peri-linfático com o intuito de desafogar o labirinto.

Durante a primeira Grande Guerra ainda Barany idealizou uma técnica em dois tempos: primeiramente, mastoidectomia alargadora e enchimento da cavidade com tecido gorduroso; a seguir, trepanava, não mais o canal posterior, mas o horizontal, como fazia Jenkins, e introduzia uma parte do enxerto gorduroso na fístula, mantendo-o em lugar com guta-percha. Os resultados foram passageiros, como os de todas as outras técnicas até então.

Nessa mesma época, Holmgren atribuiu os insucessos da cofocirúrgia ao fechamento da fístula, que ele passou a praticar ao nível do canal semi-circular anterior, cujo orifício ficava naturalmente recoberto pela dura-mater. Em 1920, aconselhou o uso da lupa e do microscópio binocular para a trepanação labiríntica, que ele passou a executar, não mais no canal anterior, mas no promontório, cobrindo a fístula com o periósteo. Resultados imediatos bons, mas de curta duração. Em 1923, experimentou trepanar a canal horizontal, cobrindo a fístula com o periósteo do próprio canal. Os resultados imediatos foram notáveis, mas, infelizmente, ainda de duração transitória, não excedendo de algumas semanas ou, quando muito, alguns mezes. É interessante assinalar o fato, comprovado por Holmgren em 1931, de que, alguns anos após a operação sôbre o canal semi-circular, alguns doentes notavam melhora do ouvido não operado. Outros cirurgiões assinalaram igualmente êste fenomeno. Em nosso modo de ver, não é preciso muita sutileza pára explicá-lo. Basta raciocinar sôbre a relativa frequência com que erramos acêrca do diagnóstico de uma enfermidade do ouvido, e sobretudo, quanto ao prognóstico. Quem labuta durante muitos anos na especialidade e acompanha os pacientes com registros cuidadosos, admira-se como é falha, ainda hoje, a interpretação de dados assimétricos, mesmo bem comprovados.

Em 1924, Sourdille foi encarregado pelo Ministério de Instrução Pública Francesa para estudar em Stocolmo a cirúrgia microscópica do ouvido e a sua aplicação á otoesclerose. Os resultados imediatos da intervenção o incitaram a prosseguir nesse caminho.

Em 1929, fez ele, a respeito, a sua primeira comunicação à Sociedade Laringológica dos Hospitais de Paris, e já então, comentava que "é absolutamente necessário respeitar o canal membranoso, porque estou convencido de que a simples picada de um canal membranoso seguida do escoamento mesmo mínimo da endolinfa, traduz-se pela surdes total imediata".

Esta convicção de Sourdille teve os seus desmentidos nos acidentes observados com as soluções de continuidade e até mesmo destruição parcial do labirinto membranoso sem maior prejuizo imediato para a audição.

Em 1935, Sourdille publicou notavel relatório à Sociedade de Otorrinolaringologia de Paris, onde acentuou os dois pontos principais da sua técnica: amputação da cabeça do martelo e confecção de um retalho cutâneo-perióstico dos dois terços internos da semi-circunferência superior do conduto auditivo externo para recobrir a fístula. Além disso, o mesmo cientista já então assinalava que o insucesso cirúrgico corria por conta do fechamento da fístula em consequência da presença do periósteo na face profunda do retalho, da presença do endosteo e da poeira óssea na luz. da trepanação e do canal. Tendo participado do Congresso da Sociedade Francesa de Otorrinolaringologia, fui testemunha do pouco interesse depertado pelo assunto, tal qual sucedeu com a comunicação de Barany em 1910, na Alemanha. Todas as modificações da técnica, tentadas por Holmgren na Suécia e Sourdille na Franca, não conseguiram despertar a curiosidade dos meios científicos. Tenho presente na memória as ironias de alguns otologistas franceses com Sourdille, comentando, jocosamente, que, antes de operados, os seus pacientes ouviam a um metro de distância e, após a operação, passavam a ouvir a metro e meio. Quando se analisa os quadros de Sourdille, com a história dos seus 109 operados, verificase que êstes foram seguidos de perto com todo o critério e senso clínico, e cumpre assinalar que a grande maioria dos resultados são aferidos pela audição para voz alta. Os casos de melhora para baixa são relativamente raros. Si o audiômetro teve a sua época nas fichas dos operados de otoespongiose, vemos que a tendência atual é para retornar à aferição pela fono-acumetria, como fazia Sourdille de maneira muito mais compreensível, atendendo-se a que é comum a informação de doentes sôbre o fenômeno interessante de que ouvem mas não escutam, o que se explica pela intercadência de sons graves e agudos na linguagem articulada e a incapacidade desses doentes para a audição de uns e não de outros.

Holmgren, depois do relatório de Sourdille, passou a cobrir a fistula com um enxerto de Thiersch, obtendo resultados mais duráveis; mas com o inconveniente de ser necessário manter aberta a cavidade operatória retro-auricular, o que o obrigou a abandonar a técnica.

Em 1936, em trabalho publicado no Zeitschrift fur Ohrenhei lkunde, Holmgren descreve uma técnica em que faz a trepanação simultânea dos 3 canais semi-circulares, de preferência com a goiva, numa extensão de 5 à 5 mms, e liberação concomitante da porção anterior da parede lateral do canal endolinfático; colocação, na cavidade operatória, de uma prótese variável: pequeno e delgado balão de borracha (cheio de ar ou de soro fisiológico), pedaços de guta-percha ou de gordura, com a finalidade de evitar coleções de sangue ou de secreções, e, tombem, impedir o fechamento das fistulas. Apresenta 34 casos com pequenas variações desta técnica, desde Fevereiro de 1935. Para evitar aderências do enxerto gorduroso com o labirinto membranoso, em 13 casos coloca, préviamente, uma delgada folha de ouro atapetando a cavidade operatória.

Nestes casos, principalmente, houve visível melhora da audição. Num
período de ano e meio de observação, verificou a permanência de certa melhora auditiva, bastante significativa em alguns casos. Nos "Archives of Otology", em julho de 1938, após uma conferência de Sourdille em N. York, Lempert publica, como nova e pessoal, uma técnica cirúrgica para o tratamento da otoesclerose, sobre cuja descrição muito judiciosamente pondera Caussé: "São os próprios elementos, exatamente descritos e figurados, da operação de Sourdille, reproduzidos e copiados sôbre esta, sem que Lempert faça uma única vez referência da fonte onde os retirou".

Recentemente, em comunicação feita à Sociedade Belga de Otorrinolaringologia, em julho de 1949, Ombredanne apresenta uma técnica de fenestração, que se caracteriza pela ablação deliberada e total de toda a membrana do tímpano, do martelo e da bigorna, secção dos ramos do estribo e confecção de um retalho cutâneo livre à custa da parece postero-superior do conduto. A trepanação labirintica é realizada com cureta especial, e não com a broca, em dois pontos: um na vertente anterior da curva do canal semicircular externo e outro no centro do promontório. O retalho cutâneo livre, previamente adelgaçado e libertado de esquírolas ósseas e fibras musculares, é colocado no fundo da cavidade operatória, de modo a que sua extremidade anterior feche o orifício tubário, sua porção média recubra a dupla fenestração e sua extremidade posterior repouse na cavidade antral. Esta técnica, realizada por Ombredanne, foi idealizada em consequencia dos bons resultados auditivos por ele obtidos em operações plásticas de malformações congênitas do aparelho auditivo, com ausência de conduto auditivo externo e atrofia ou aplasia da caixa do timpano, intervenções estas em que a fenestração labirintica era recoberta com retalho cutâneo livre. O grande "cavalo da batalha", da conservação do timpano e dos ossículos estaria, assim, desacreditado. Do mesmo modo, o uso de cureta própria, ao envéz de broca, removeria o problema da poeira óssea no campo operatório, outro "cavalo de batalha" da cofocirúrgia. Embora não o afirme, Ombredanne atribue a bom resultado obtido no seu operado de otoesclerose à dupla fenestração e a possibilidade de retirar e adelgaçar à vontade o retalho cutâneo. "É prematuro, por enquanto, tirar uma conclusão positiva ou definitiva". (Ombredanne).

Mais recentemente em Dezembro de 1949, Aubry com o intuito de impedir o fechamento posterior da trepanação labirintica, sugere a colocação de uma pequena peça perfurada de acrílico após a remoção do endosteo e regularizada a janela. 0 retalho cutâneo é adelgaçado e aplicado contra a parede interna do ático, recobrindo a área operatória.

Ainda em 1949, Gino Cornelli, de Milão, apresenta nova técnica de abertura do vestíbulo atravez da janela oval, já tentada por Kessel (1876) e por Jack (1894). Após incisão retro-auricular e ressecção da espinha de Henle, executa o descolamento "englobado" da pele da parede posterior do conduto e da membrana do timpano. A desinserção desta é facilitada pela existência da "borraina" de tecido conjuntivo frouxo de Gerlach. A seguir, trepana e remove o ramo posterior do anel timpânico, chegando, assim, com mínimo traumatismo cirúrgico, à porção posterior da Caixa, onde tem uma visibilidade ainda não alcançada por nenhuma outra técnica, pois domina cirurgicamente a cadeia de ossiculos, as duas janelas, o promontório com o nervo de Jacobson e a corda do timpano. Após ressecção da bigorna, todo o estribo é tambem retirado, incluindo a platina. A ressecção desta última, quando muito aderente com o contorno da janela oval, é facilitada por meio de broca elétrica de diminuta dimensão.

Na cicatrização post-operatória, a janela é reaberta pela mucosa da caixa e a membrana do tímpano contraem aderências com o promontório, o que é facilitado pela presença de fibras conjuntivas da borraina anular de Gerlach. A caixa do tímpano fica, assim, dividida em duas porções. uma tubária, e outra posterior, em que se encontram as duas janelas.

Os resultados obtidos são paralelos aos das outras técnicas de fenestração sobre o canal semi-circular externo (65% em 41 casos com 20 a 30 db. de ganho auditivo), sendo que em nenhum caso houve fechamento osteogênico da janela oval. Em dois casos reoperados, foi comprovada a obstrução da janela por tecido fibroso. (!)

Esta técnica apresentaria a vantagem de rápido post-operatório (5 à 6 dias para a cicatrização da incisão retro-auricular), ao lado de acentuada redução dos acidentes post-cirurgico (vertigem e nistágmo).

Cornetti atribue os insucessos a más indicações e à obstrução da janela por tecido fibroso (eventualidade rara, que se verifica cêrca de um mês após o ato cirúrgico).

Em trabalho publicado posteriormente (1950), Cornelli extende a indicação de sua técnica a certas otites médias colesteatomatosa e a processos fibrosos da caixa do tímpano com anquilose dos ossiculos e perturbações vertiginosas.

Após êste ligeiro retrospecto sobre os pontos cardiais da cofocirurgia, desejamos deter-nos numa análise acêrca de alguns detalhes sôbre a evolução da técnica cirúrgica. Inicialmente, a via de acesso ao labirinto se fazia através da região retro-auricular (Barany, Hotmgren, Sourdille). Posteriormente, houve um retorno à antiga técnica endo-aural de Hoffmann-Thies (a publicação de Hof fmann é de 1892, no numero 7 da Korrespondenz "Blãtter des Allgemeinen Arztlichen Vereins von Thuringen. Esta técnica foi divulgada pelos irmãos Thies, em Leypzig, e descrita, por Carlowitz em 1918 nos Archives fur H. N. und Obrenheilkunde, vol. 103, pg 73).

Lempert apresenta uma nova incisão, pré-ante-auricular, seguida de trepanação clássica da mastoide, sendo de notar que Ledoux, antes dele, já havia praticado a tímpano-aticotomia pelo conduto auditivo externo para o tratamento cirúrgico da otoesclerose, segundo referência de Sourdille, no seu relatorio de 1935 que, por sinal, faz as suas restrições quanto às condições fisioacústicas e cirúrgia por essa via. Atualmente, toda a tendência é operar pela via endo-aural clássica; o retalho é praticamente o mesmo, atingindose o ouvido médio através de uma trepanação diréta da parede externa do ático, procurando-se evitar de ultrapassar os limites do ático. A via endo-aural permite uma dupla e suficiente exposição do canal semi-circular e a confecção de um retalho que o operador modela a sua vontade, deante da abundância de material.

Quanto à trepanação labiríntíca, a primeira foi realizada através da platina do estribo (Alderston), depois sôbre o promontório (Passow), sôbre o canal semi-circular posterior (Barany), sôbre o canal horizontal (Jenkins, Barany, Holntgren, Soudille), sôbre o vestíbulo ("nova ovalis", de Lempert) e, atualmente, houve um retorno ao canal horizontal, executando-se a fenestração ao nível da ampola do canal. Inicialmente as fenestrações labirínticas eram exíguas, de dimensões mínimas. Pouco a pouco foram sendo alargadas e, hoje em dia, são bem maiores do que as primitivas. Estes contrastes na extensão da trepanação é uma prova de que as primeiras eram insuficientes, do contrario não se aconselharia uma exposição trais ampla de um órgão tão delicado como o labirinto. O uso da lupa para a trepanação do canal semi-circular foi introduzido por Holmgren. A princípio, as lupas davam um aumento de, no máximo, três vezes. Atualmente, os microscópios binoculares alcançam um aumento de 10 à 12 vezes, permitindo ao operador ser muito mais minucioso na fase final de remoção do endósteo, que era feita, primitivamente, de maneira até certo ponto duvidosa. Além disso, a delicadezas dos instrumentos atuais prova que as intervenções praticadas antes do, advento dêstes não podiam alcançar os mesmos benefícios atuais.

Atualmente, comprova-se também uma tendência a usar-se a cureta na trepanação labirintica, ao envéz da broca elétrica, em virtude daquela provocar menor traumatismo e menor produção de poeira óssea. O trépano elétrico, por melhor que seja a irrigação continua do campo operatório, sempre desenvolve calor pelo atrito, o que vai repercutir sôbre o labirinto, especialmente na sua porção membranosa, acarretando uma labirintite sorosa post-operatória. É difícil avaliar até que ponto a porção membranosa do labirinto foi atingida e suas consequências, segundo os diferentes cirurgiões. A êste respeito, é interessante referir o que me relatou em Paris, há alguns meses, um especialista francês: no decurso da fenestração labiríntica, aconteceu-lhe aspirar, acidentalmente, parte da porção membranosa do labirinto, sem que isto acarretasse complicação nem a menor consequência ou prejuízo imediato para a audição.

Quanto aos tipos de broca empregados, todas as variedades já foram usadas. Inicialmente, Lempert executava a trepanação labiríntica com brocas de aço, depois passou a usar brocas de ouro e, finalmente, de chumbo. Lempert acabará fazendo a trepanação com brocas não se sabe de que natureza, pois, cada jaez que muda de broca, apresenta melhores percentagens de cura. Estas modificações dos tipos de broca constituem um argumento poderoso para evidenciar como é difícil joeirar com estatísticas, sobretudo quando se analisa as primeiras estatísticas de Lempert, onde os resultados favoráveis apresentam um coeficiente elevadíssimo de bons resultados que não melhoraram, realmente, com as mudanças dos tipos de broca.

De modo idêntico, com a finalidade de evitar a obstrução da fenestração labiríntica pela osteogênese secundária, inúmeros têm sido os artifícios empregados. No tocante aos tipos de brocas, Lempert passou a usar brocas de chumbo, que inibiria a osteogênese, apresentando, entretanto, o inconveniente de possível ação tóxica do chumbo sôbre os elementos altamente diferenciados do labirinto. Com o mesmo intuito de poupar o labirinto, alguns cirurgiões fazem a trepanação utilizando-se do trépano e da cureta simultaneamente: de início, utilizam-se da broca, apenas para destruir a camada mais externa do canal; a seguir, passam a usar a cureta para remoção do osso e do mesosteo até a vizinhança do endosteo.

Ainda com a mesma finalidade de evitar a osteogênese secundária, vários outros recursos têm sido usados, entre eles os obturadores colocados no orifício da trepanação. Lempert passou a usar um obturador de platina, depois de cartilagem e, atualmente, nem um nem outro. Note-se que Sourdille já havia usado a cartilagem com o mesmo fim. Recentemente, Aubry utiliza-se de um obturador especial de acrílico.

Uma inovação na técnica da cofocirurgia, removendo o inconveniente da permanência de poeira óssea no campo operatório, uma das principais causas de osteogênese secundária, na opinião de alguns, foi a introdução da irrigação permanente com aspiração de Schambaugh, em 1940. Diferentes espécies de aparelhos de irrigação e aspiração foram fabricados, cada cirurgião preferindo o seu próprio.

A cobertura da fenestração é outro detalhe de técnica que muito tem preocupado os diferentes autores. Neste particular, o ideal seria a cobertura da fistula labiríntica por um retalho de superfície não osteogênica, que seria representado, no caso, pela superfície mucosa da membrana de Schrapnell. Tal possibilidade, garantida por Lempert, que o considera como fator indispensável a não obstrução da fístula e, portanto, da permanência do ganho auditivo post-operatório, é reconhecida, hoje em dia, de maneira unânime, como inesquecível. Uma vez, portanto, que a trepanação labiríntica só pôde ser recoberta peio retalho cutâneo-períóstíco do conduto, tem-se procurado remover a camada osteogênica periódica do mesmo, adelgaçando-o o mais possível. Infelizmente, entretanto, por mais que sé disseque a membrana periódica, não é possível extirpar-se o potencial ("genia") mesenquimatoso que perdura na intimidade do retalho e que possue capacidade para produzir osteoblastos, originando tecido fibroso e subsequente tecido ósseo.

Como se vê, a finalidade maxíma da cofocirurgia reside na persistência definitiva do ganho auditivo post-operatório e todos os esforços são empregados no sentido de evitar-se a osteogenese secundária da fenestração labiríntica.

Merece especial referência o modo pelo qual se realisa a cicatrização da cavidade operatória, causa de inovações na técnica cirúrgica, com detalhes aparentemente insignificantes, no intuito de limitar a trepanação e restringir ao mínimo a agressão ao sistema celular da mastoide. É de todos conhecida a dificuldade que oferece a epitelização da cavidade operatória, cuja importância se valoriza na cirurgia da otoesclerose por causa da cobertura da trepanação praticada sôbre o canal semi-circular. É indispensavel para a expectativa de um bom resultado, que o retalho periósteo-cutâneo se fixe logo nos primeiros dias. Qualquer infecção é sempre de máu pressagio para o resultado funcional, além de proporcionar o perigo de complicações. Atente-se que o revestimento epitelial da cavidade operatória depende de um sem numero de fatores, alguns subordinados a fatores de ordem anatômica, e, outros, a circunstâncias fortuitas, sem contar aqueles que escapam ao nosso conhecimento. Nem sempre os maiores rigores da assepsia, assim como o emprego judicioso dos antibióticos, são suficientes para nos garantir um bom êxito. Todos aqueles que se familiarizam na cirurgía da mastoide conhecem de sobra os tropeços do post-operatório e como são falhas e desalentadoras as evoluções da cicatrização na cirurgia da mastoide. Onde se espera uma sequência post-operatória normal, surgem todos os imprevistos, e, não raro, quando o operador prevê delongas na sua marcha tudo caminha normalmente. já mencionamos, linhas atrás, fatores imprevistos, que, de tato nos desnorteiam. Na cofocirúrgia procura-se alcançar a cicatrização da cavidade operatória sem que haja secreção, mas por emquanto ainda estamos longe desta pretensão. Esta é a razão porque certos especialistas falam em infecção quando há secreção (que sempre aparece) e em supuração quando o corrimento purulento é abundante.

Não vejo o porque de tal distinção nestas duas fases e, diga-se de passagem há casos em que a exsudação permanece por muito tempo, as vezes com caracter intermitente, e outras vezes a supuração, passageira e abundante, desaparece em tempo relativamente curto. Está-se a vêr que fixado o retalho cutâneo, periósteo sôbre o orifício da trepanação labiríntica, de regra na primeira semana, a reação inflamatória cicatricial há de forçosamente repercutir na vizinhança sobrepondo-se, à labirintite traumatica devida a trepanação do canal semi-circular, uma reação inflamatória, causando a primeira uma baixa transitória da audição (cêrca de vinte decibéis), mencionada na literatura. Pudemos acompanhar pacientemente e por longo tempo, muitos dos nossos operados de esvaziamento petro-mastoidêo por via endo-aural e verificar como são acertados os comentários da Escola Alemã acêrca do modo peio qual se processa a evolução cicatricial. O conceito de cicatrização epitelial e de cicatrização mucosa reflete bem a distinção entre os dois tipos e deixa margem para deduzir-se sôbre a sua significação, cicatrização sêca e cicatrização húmida. O tecido de granulação, que por força das circunstâncias sempre aparece, deve ser afastado quando revela tendência a se desenvolver com muita exuberância, afim de se impedir a formação de tecido cicatricial muito espesso, o que favorece a pululação microbiana em prejuízo da estilização (assunto amplamente debatido em 1929, no Congresso de Königsberg).

Estes comentários vêm a propósito para criticar a tentativa de alguns cirurgiões especialistas em estender a indicação da cofocirurgia a casos de otite média supurada crônica, simples ou colesteatomatosa, com baixa da audição na escala dos sons graves. Na otite média supurada crônica, e também na otite colesteatomatosa, raramente baixa a audição para os sons agudos, e, quando isto acontece é quasi sempre em ligeiro grau. Para os sons graves, a baixa auditiva é habitualmente discreta, mais frequente nas supurações que datam da infância e que tiveram evolução permanente (é de regra observar-se surtos intermitentes de supuração com maior ou menor intervalo de tempo) ou acidentada; acrescente-se que a otite média supurada crônica simples ou colesteatomatosa não agride, via de regra, os dois ouvidos simultaneamente, ocorrência mais observada na infância.

Em vista da agressão de um só ouvido, os adultos excepcionalmente procuram o especialista por causa da baixa de audição. A consulta traz sempre como causa a supuração, e, num ou noutro caso, supuração e baixa da audição simultaneamente. Tanto nas otites médias supuradas crônicas simples, quanto nas otites de tipo colesteatomatosa, mesmo naqueles casos em que o estribo foi acidentalmente removido na intervenção cirúrgica, esta não melhorou nem piorou a audição. Além disso, cumpre assinalar que nada impede o aparecimento de supuração no decurso de resfriados, gripes e outras intercurrências no estado geral, ou quando há penetração de agua no ouvido por descuido do paciente. As vezes soe acontecer o epitélio cicatricial se entumecer, descamar-se e avolumar-se em consequência da simples umidades atmosférica, fenômeno talvez tambem condicionado pela amplitude circunstancial da cavidade operatória.

Todas estas considerações provam bem a inconsistência de uma indicação cirúrgica, exposta a tantos acidentes e riscos, para melhorar a audição sôbre terreno tão frágil; indicação que encontrou apoio numa circunstância fortuita condicionada a uma verificação cirúrgica; indicação de esvaziamento petro-mastóideo devido a otite média colesteatomatosa, com presença de fístula. A cicatrização favorecida por revestimento epitelial pode trazer acentuada melhora na audição. Entretanto a exceção não determina a regra, mesmo porque não se pode estabelecer comparação entre uma fístula condicionada por um processo patológico e uma fistula criada por artifício cirúrgico. São bem diferentes as condições de uma e de outra. No primeiro caso, a infecção se encarregou de criar defesas espontâneas, enquanto que na segunda hipótese é difícil prever quais são as consequências da criação de uma fístula sôbre o labirinto em um terreno que sofreu anterior infecção e sujeito a surtos intermitentes de supuração, que o próprio ato cirúrgico pôde despertar. O bom senso e a lógica devem evitar a fantasia, e nos levar a ponderar que, se a cofocirúrgia ainda se acha em fase de julgamento, é prematuro querer levar a técnica para um terreno tão perigoso quão instável como o da otite média crônica supurada ou colesteatomatosa, individualidades patológicas que sempre foram consideradas como uma contra indicação na cirurgia da surdes. Nada se perde por esperar em generalizar uma técnica que não tem ainda a última palavra e lembrar que a mesma passa por seu quinto período de apresentação: 1876, 1910, 1918, 1935, 1939.

Numa análise imparcial de tudo o que foi feito desde Kessel à Bárány, de Bárány à Holmgren, dêste até Sourdille e, podemos acrescentar, de Sourditte até os nossos dias, podemos concluir, de acôrdo com as pesquizas e observações publicadas, que o problema da surdes continua a desafiar os otologistas. Embora a publicidade feita em grande escala por Lempert em 1939, tenha despertado de novo o assunto, continuamos, entretanto, a espera de uma solução que permita afirmar, com maior sinceridade, que a terapeutica cirurgica fez um grande progresso. Maugrado a habilidade indiscutível de alguns cofocirurgiões, de uma maestria extraordinária na execução de todos os detalhes da técnica e, por outro lado, os abusos verificados no diagnóstico de otoesclerose e a boa fé daqueles que aceitaram a intervenção na esperança de uma melhora para a sua deficiência auditiva, não podemos deixar de comprovar que a situação do presente não sobrepujou a do passado. A literatura sôbre o assunto, assim como a prática hospitalar e civil, permite-nos fazer esta apreciação pois muitos pacientes viram suas esperanças desiludidas, outros tiveram a má sorte de perder o que lhes restava de acuidade auditiva ou obtiveram resultados muito medíocres e, finalmente alguns outros rejubilaram-se com um benefício passageiro que lhes permitiu retomar, durante algumas semanas, meses e, por vezes, mais tempo, suas atividades profissionais. Entretanto, não podemos olvidar que resultados desta natureza já haviam sido obtidos e publicados. Em 1910, Bárány, para provar sua teoria sôbre o funcionamento do tímpano artificial, praticou assepticamente uma fístula no canal semi-circular vertical posterior com uma melhora passageira da audição. Em 1913, Jenkins retoma as experiências de Bárány e executa a fístula do canal horizontal. Num caso, protege a trepanação labiríntica com um enxerto dermo-epidérmico de Thíersch e em outro com um retalho retirado da parede posterior do conduto. Em ambos os casos o benefício real foi de muito curta duração. Em 1917, Holmgren trepana o canal vertical anterior e recobre a fístula com a própria dura-mater a fim de obter uma cicatrização de primeira intenção entre a fistula e a meninge. O benefício foi de pouco tempo do mesmo modo que para um outro caso em que adelgaçou a dura-mater com a esperança de favorecer a cicatrização entre a aracnóide e a fístula (não esqueçamos de que Lempert nas suas primeiras publicações, tinha a pretensão de recobrir a fístula com a membrana de Shrapnell, detalhe a que não mais se refere atualmente). Neste meio tempo, Barany retorna a carga com a sua técnica em dois tempos, já referida, decepcionando-se novamente, pois os benefícios para o lado da audição não persistiram senão durante duas semanas. Em 1920, Holmgren introduz o uso da lupa e do microscópio binocular, o que marca uma etapa de real valor na cofocirurgia. Os seus resultados, entretanto, continuavam sendo de caracter transitório. Em 1944, Sourdille se aproxima de Holmgren e retoma a técnica do tratamento cirúrgico da surdês numa nova direção, apresentando a Sociedade Francesa de Oto-rino-laringologia, em 1935, um longo relatório em que desce aos mais minuciosos detalhes e em que aprecia o problema sob todos os ângulos. Reconhece, entretanto, que a percentagem de resultados verdadeiramente felizes ainda é modesta. Embora o relatório de Sourdille não tenha tido repercussão na época, forçoso é reconhecer que tudo que foi feito posteriormente na América do Norte e em outras partes do mundo, nada mais é que uma consequência do trabalho de Sourdille. Façamos, aqui, uma calorosa homenagem a Holmgren que, a ponto de abandonar suas pesquisas, deixa-se contaminar pelo entusiasmo de Sourdille e retoma suas atividades na esperança de encontrar um outro caminho. Convencido de que os seus resultados transitórios eram devidos a natureza osteogênica do retalho muco-perióstico ou da dura-mater (fato entrevisto por Bondy em 1922), Holmgren encaminhou suas experiências para o lado dos enxertos, cuja técnica logo abandonou, por motivos já assinalados.

A operação da fenestração não oferece, em si mesma, maiores dificuldades a quem está experimentado na otocirurgia. Requisita, naturalmente, habilidade manual, delicadeza e destreza, e, sobretudo, muita paciência.

A imobilidade do paciente se obtêm com o auxílio de processos anestésicos gerais ou locais. Alguns preferem, simultaneamente, como sucede com os ingleses e americanos, a narcose precedida de indução (anestesia de base). Acentue-se que a anestesia local, auxiliada pela anestesia de base, proporciona a mesma tranquilidade do paciente. E uma questão, pura e simples, de "equipe" cirúrgica.

Achamos exagerada a opinião de Lempert e de Schambaugh de que só se pode adquirir uma experiência favorável na cofocirúrgia depois de se ter operado, pela menos, 100 casos e que a boa indicação tambem nasce dessa experiência cirúrgica. É interessante assinalar que as estatísticas, como sempre acontece, não podem dar uma idéia absoluta dos resultados obtidos. Os dados são aferidos de acôrdo com o critério de cada um. Seria interessante que aqueles que têm a seu ativo algumas centenas, ou melhor, que já passam do milhar, publicassem, suponhamos, após um decênio, os reais benefícios conseguidos nesse espaço de tempo. Fiquei muito surpreendido quando, em 1946, um conhecido otologista argentino, de volta do Congresso de Chicago, me afirmou que, após 10 anos de experiência, tinha concluído que continuava a executar a operação de Lempert para não dizerem que ele não tinha experiência, mas que, infelizmente, os seus resultados eram desalentadores.

A apreciação das estatísticas nos mostra que afóra algumas exceções, o número de cirurgiões que atingiu um algarismo realmente excepcional é bem reduzido. Neste sentido, assinalaremos os nomes de Lempert, de Schambaugh e de Garnett-Passe. O primeiro é o operador campeão que, certamente, já ultrapassou Schambaugh, cujo último trabalho publicado num dos recentes números da Acta Oto-larângológica aponta a cifra extraordinária de dois mil casos, seguindo-se Garnett-Passe, de Londres, com mais de um milheiro. Permita-nos citar, por indiscrição, a Salomon, de Paris, cuja estatística se aproxima dos 3 centos de casos.

No Brasil, ousamos afirmar, talvez sem engano, que ainda não atingimos a uma centena de casos operados (pelo menos os já publicados), o que não teria significação estatística na opinião de Lempert e Schambaugh, opinião que julgamos exagerada, como já referimos. Para o especialista não habituado a cirúrgia da mastoide, haverá, naturalmente, a necessidade de um treinamento prolongado, mas, para aquele familiarizado com tal cirúrgia não existirá, por certo, nenhuma dificuldade em confeccionar. um retalho cutâneo-perióstico e trepanar um canal semi-circular.

Se, no Brasil, o número daqueles que consultam o especialista em consequência de deficiências auditivas não é tão elevado quanto na América do Norte, a nossa população, entretanto, que atualmente ultrapassa de 45 milhões, deveria nos fornecer um coeficiente mais elevado de casos operados. Em oito anos, as estatísticas brasileiras relatam 59 pacientes operados no Rio de janeiro e 9 em S. Paulo. Além disso, parece-nos que nestes dois últimos anos a realização da cofocirurgia no Brasil não se modificou muito, continuando em movimento lento.

O Prof. José Kós (professor de Oto-rino-laringologia na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de janeiro), que fez toda a sua carreira profissional ao nosso lado, foi o primeiro a executar a fenestração labiríntica para tratamento da oto-esclerose no Brasil, tendo tido a oportunidade de frequentar o Serviço de Lempert em 1940, 1943 e 1946. Em trabalho apresentado no II.° Congresso Brasileiro de Oto-rino-laringologia, realizado em Salvador (Bahia), em janeiro de 1948, o Prof. Kós nos apresenta a única estatística publicada entre nós com detalhes, em que aponta, com toda a sinceridade e lealdade, os seus sucessos e insucessos.

Quanto à indicação da cofocirurgia, achamos que há muita facilidade em se diagnosticar a otoesclerose. Tenho visto diagnósticos e indicações cirúrgicas as mais fantásticas, inclusive de otite média adesiva, em que a operação acarretou piora da audição e em que o operador insistiu em intervir sôbre o outro ouvido, afirmando que a intervenção teria a vantagem de melhorar o primeiro ouvido já operado. No meu longo tirocínio dentro da especialidade tive a oportunidade de acompanhar famílias de surdos e verificar, em muitos casos, a falência do meu prognóstico, inclusive de moças que se casaram, tiveram filhos e amamentaram, sem que tivesse havido progressão na sua surdes. Mesmo nas mãos dos mais experimentados, quantas vezes é feito um diagnóstico de otoesclerose e, muitos anos mais tarde, a audição ainda se conserva pouco prejudicada.

Temos verificado que as indicações atuais abrangem as surdezes de condução e, até, surdezes provocadas por otites médias supuradas (!), simples ou colesteatomatosa, como já referimos.
Felizmente já se esboça uma reação contra o exagero no diagnóstico de otoesclerose e contra a facilidade de certos especialistas em indicar terapêutica cirúrgica para casos que na realidade se catalogam no grupo geral da surdes de condução.

A otoesclerose clínica, assim denominada por alguns (como se pudessem existir duas entidades, uma anatômica e outra clínica), não passa de grosseiro subterfúgio para justificar indicação que não têm, na realidade, nenhum fundamento. Não se pôde, nem se deve admitir que, de uni momento para outro, simplesmente pelo desejo de aconselhar determinada terapêutica, se fuja de postulados já consagrados. Não devemos esquecer que diante da impossibilidade de se garantir tal ou qual benefício para a audição, o especialista consciencioso deverá sempre expor ao paciente, muito claramente, a verdadeira situação, fugir das reticências e, tambem preveni-lo da possibilidade de piorar em vez de melhorar da sua surdes, ao lado do eventual aparecimento de complicações que o mais experimentado e cuidadoso profissional nem sempre pôde sustar (complicações às vezes muito graves e a;é mesmo mortaes).

Felizmente não são frequentes tais complicações, porém, surgem de vez em quando, ora lealmente apontadas nas revistas, ora observadas nos serviços privados e hospitalares.

No tocante a aferição do grau de surdes, convem assinalar que o aparecimento do audiômetro e a larga propaganda do seu emprego levaram os especialistas e deixar de lado o principal e mais importante elemento: a voz humana, e tambem os outros metodos acumetricas que a clínica já consagrara. Atualmente, retorna-se ao bom senso e o audiômetro deixou de ter o privilegio adquirido com a propaganda através de um dos mais entusiastas cirurgiões da Otoesclerose na América e, que um dos recentes numeros de unia revista americana acentúa a necessidade do exame pelos diapasões, assim como, pela voz. Não podemos desprezar, é certo, os estudos acumetricos que se fazem através das camaras silenciosas.

Na apreciação da evolução histórica da cirurgia da oto-esclerose, vemos que Lempert conseguiu despertar nos meros científicos americanos o entusiasmo que Sourdille não conseguiu levantar nos meios científicos europeus, fato atribuído, segundo Foruler Jr., a um erro de psicologia, isto é, a ausência de gráficos audiômetricos nas observações de Sourdille. Entretanto, como pondera o próprio Sourdille: "o quê conta é o resultado; o doente escuta melhor após a operação, está ele contente? Pode ele retomaras suas ocupações? O que conta é mostrar doentes e não audiogramas. O ouvido é feito para entender a voz humana e não os sons celestes do audiômetro. Sómente a fono-acumetria deve entrar em linha de conta".

Hicguet, em seu estudo histórico da colocirurgia, comenta que: "si os audiogramas e os audiometros fizeram a fortuna de Lempert, pode dizer-se que ele fez a fortuna dos audiometros".

Até 1939, os estudos e as pesquisas sôbre a cofocirúrgia foram feitos sem alardes, passando daí por deante pata a publicidade, mesmo internacional, como em artigos vulgarizados pelo "Readers Digest".

É interessante assinalar entre nós, no Brasil, a publicação de casos em que o proprio operador reconhece de antemão a impossibilidade de êxito, uma vez que os pacientes apresentavam pronunciada surdes, fóra dos limites operatórios. Os exèrcícios de novas técnicas em "anima nobili" não se justificam de modo algum. Pelo que temos tido oportunidade de observar, parece-nos que a ânsia de indicação cirúrgica acabou por transportar o problema da otoesclerose para outro terreno de amplitude mais vasta, sem limites precisos: a cofocirurgia. Pelo menos, é o que temos comprovado num grande número de doentes que nos procuram, já trazendo indicações cirúrgicas.

Nós, que acompanhamos de perto, desde 1905, a evolução da oto-rino-laringologia, e sempre nos interessamos pelos seus problemas, sem excesso de entusiasmo nem tão pouco de pessimismo, como já tivemos a oportunidade de demonstrar em trabalhos publicados, nunca deixamos de frisar a importância e a necessidade de cultivar o espírito dos especialistas dentro de limites muito amplos, e sempre fizemos uma distinção entre o técnico e o possuidor de cultura geral e autocrítica. Tal diferença é que explica o depararmos, a cada instante, no exercício de nossa profissão, com os maiores absurdos a estabelecer corrente no espírito dos menos esclarecidos. Existem problemas, no domínio da Oto-rino-laringologia, cuja solução, infelizmente, apezar dos esforços dos mais pertinazes e sinceros pesquisadores, não teve ainda uma orientação que se baseasse num substrato verdadeiramente cientifico. Não é possível estabelecer terapêutica sem conhecimento da etiologia e, enquanto tal enigma não for decifrado, tudo quanto se fizer não passará de pura especulação.

Que nos seja permitido fazer aqui uma apreciação a respeito do motivo desta conferência (um apanhado de ontem, de hoje e de amanhã acêrca do tratamento cirúrgico da oto-esclerose), sob o ângulo da mentalidade da nossa época, cujas ideias conduzem o mundo e cada vez dão menos valôr ao ser humano. Os sofrimentos de duas guerras impiedosas; as abominações praticadas sob o pretexto de pesquisas científicas, a introdução de engenhos de guerra, manejados por urna juventude imbuída de espírito de aventura e embriagada pelo perigo, permitindo a matança em massa de combatentes e inocentes, modificaram de tal modo tudo aquilo que emprestava beleza e encantamento à vida, que não é surpreendente comprovar que, mesmo no exercício de nossa profissão, o sacerdócio tenda sido substituído por uma corrente de ideais que deixou de lado toda consideração de ordem moral, senão também de ordem sentimental, desprezando nossa alta categoria na escala animal para nos rebaixar ao plano de animal de laboratório, motivo de pesquisas científicas. Não cremos exagerar traçando um panorama de tão vivas cores, pois a isto somos levados pelo que temos tido oportunidade de observar. Do lado europeu do Atlântico, tivemos ocasião de lêr um especialista declarar, em artigo publicado numa revista de Oto-rino-laringologia, que o paciente em que apurava a sua técnica não era um caso que permitisse esperar um bom resultado funcional, mas que era lucrativo para demonstrar a excelência de uma nova técnica para executar a fenestração. O enunciado vale a transcrição: "il faut considerer que ce cas ne represente pas une indication idéale pour une fenéstration, il a èté toutefois choisi pour montrer la facilité avec laquelle ma techilique peut ètre exe-cuté. Ii n'y avait pas un interêt particulier pour le resultat auditif".

Do lado sul-americano do Atlântico, um outro cirurgião especialista declara que seus pacientes não tinham nenhuma indicação operatória, nenhuma possibilidade de benefício, de tal modo era acentuado o grau da surdes; mas, premido pela insistência dos pacientes, que desejavam de qualquer maneira tentar uma chance, que não existia, ele os opera e as suas observações servem também de apóio para demonstrar a excelência de uma nova técnica de acesso para a fenestração. São estas as surpreendentes declarações de dois especialistas, de dois continentes, sem rodeios nem subterfúgios, que não têm outra preocupação na escolha de seus pacientes do que a de experimentar a excelência de uma nova técnica para atingir o canal semi-circular.

Alhures, em uma revista americana, tivemos a oportunidade de ler, uma publicação que não tem nenhum senso comum e que, ao mesmo tempo, revela ausência absoluta de espírito de critica. Trata-se da história de um homem de 43 anos de idade, com antecedentes familiares de oto-esclerose. O audiogramas indicava um tipo de surdes mixta com perda auditiva mais acentuada para os sons agudos. O diapasão 2048 revelava uma quéda de 35 decibéis para á condução óssea. O primeiro audiogramas após a operação não demonstrou nenhum beneficio. Depois de dois meses e meio o paciente teve uma pequena melhora subjetiva e, nesta época, submeteu-se a extração de uma raiz dentária infectada. Alguns dias após a extração dentária fez-se sentir uma melhora da audição, confirmada uma semana depois por um audiograma, de maneira dramática para os limites auditivos. Esta melhora persistiu até o fim do primeiro ano e conservou-se no mesmo nivel em um outro audiogramas realizado três anos mais tarde. Na realidade, a remoção da raiz dentária infectada teria sido o suficiente para melhorar a audição. Certamente, não se tratava de um caso de otoesclerose. Houve erro de diagnóstico e mais grave erro de indicação terapêutica. Nêste particular, temos visto uma série de situações semelhantes, em graus variáveis, não só entre profissionais mais jovens como tambem entre mais experimentados, para não falar nos casos de resultados operatórios precários ou nos casos de surdos que tiveram a sua audição agravada em consequência de cirurgía realizada em virtude de diagnóstico mal conduzido, e que, além disso, ainda são seduzidos para aceitar a intervenção no outro ouvido com a promessa de um melhor sucesso e da probabilidade de um benefício sôbre o ouvido já operado. A verificação desta repercussão benéfica hetero-lateral, frequentemente assinalada na literatura com o apóio de personalidades que merecem a nossa maior consideração, só serve para aumentar a confusão e abrir um caminho excessivamente perigoso a todos aqueles que não têm a experiência de uma longa prática na especialidade e nenhum conhecimento do passado, pois êste fenômero, malgrado todas as hipoteses para a explicação do seu mecanismo, já havia sido tambem observado, passageiramente, em casos de oto-esclerose que, por causas fortuitas, sofreram trepanação de suas mastóides. A comprovação desta ocorrências não fez, parece-nos, muitos adeptos.

No momento que passa, o tratamento cirúrgico da oto-esclerose parece seduzir os espíritos, até então indiferentes ou céticos a tal respeito. Esta onda de entusiasmo que agora se observa, em nada difere da que comumente se verifica com toda terapêutica nova que surge. Haja vista a época em que foi moda a trepanação labiríntica iniciada com a Escola de Viena, liderada por Alexander, e o diagnostico das petrosites. É significativo assinalar que a efervescência passou é hoje em dia são muito reduzidas as publicações de observações neste sentido.

Quanto ao entusiasmo despertado pelas publicações de Lempert, é interessante transcrever algumas considerações feitas por Hicguet: "Lempert é incontestavelmente de uma habilidade manual extraordinária, e sua atividade seria melhor apreciada sem o seu dinamismo ruidoso, de uma sonoridade mundial. Embora afirmasse em 1945, obter 98% de sucessos (serviceable hearing), ele modifica continuamente sua técnica e dificilmente nos explica porque, com 2% de insucessos, ele procura a perfeição em detalhes cuja importâncias não está demonstrada".

É ainda Hicguet quem diz linhas abaixo: "Se devemos admirar o entusiasmo permanente deste cofocirúrgião, forçoso nos é comprovar que o recuo do tempo o faz apreciar seus sucessos em proporções muito menores: de 98%, ele os reduz atualmente a 50 e 60%. São êstes os números que ele referiu por ocasião de tinia recente viagem a Europa, durante a qual espantou-se não sem ironia, de que seus discípulos europeus citem algarismos superiores aos seus, que correspondem entretanto aos seus algarismos anteriores".

Em trabalho publicado em 1941, Lempert descreve a técnica denominada "nova ovalis" executada em 75 pacientes, acentuando que em nenhum destes casos houve regeneração óssea da fenestração labiríntica. Em 3 dos pacientes foi feita a verificação do estado da "nova janela", e comprovado que a mesma mantinha-se aberta, cêrca de 5 meses após a operação. Nesta série de pacientes, Lernpert tentou, em alguns casos, colocar um pequeno áro de platina irídio no orifício da trepanação, tendo abandonado êste propósito por dificuldades técnicas.

É realmente assombroso, no nosso entender, que Lempert tivesse abandonado unia técnica que oferecia a garantia da permanência definitiva da fenestração, pois em nenhum caso se processou a osteogenese secundária.

O assunto está na ordem do dia, discutidíssimo, vendo-se adeptos apaixonados contra céticos experimentados, que esperam o correr do tempo para firmarem doutrina. É interessante notar que a corrente dos mais experimentados, e portanto mais sedimentados, não se deixou arrastar por êste prematuro, preferindo deixar que os mais novos temperem no tempo o seu entusiasmo.

Quem pode afirmar que as cortinas estão abertas e que não mais se fecharão? No momento, ainda é cedo fazer-se afirmativa desta natureza. Façamos uma menção honrosa àqueles que alumiaram o caminho, reverenciando a memoria de Barany, e, ao mesmo tempo, rendamos a Holmgren, e a Sourdille as homenagens que lhes são devidas. Restabeleçamos os fatos nos seus justos termos, sejamos prudentes nas indicações e sóbrios ao medir a nossas possibilidades.

"A César o que é de César".




(1) Conferência realizada no dia 4 de Outubro de 1950, em Lausaune (Suíça) na reunião do Oitavo Congresso da Societas Otorinolaryngologica Latina.
(2) Professor Catedratico da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasil e da Faculdade de Ciências Médicas - Rio de Janeiro

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