Versão Inglês

Ano:  1940  Vol. 8   Ed. 5  - Setembro - Outubro - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 341 a 344

 

UM CASO INTERESSANTE DE CORPO ESTRANHO DO OUVIDO (*)

Autor(es): DR. GUSTAVO DOS REIS

O caso clinico que constitue assunto da presente observação se nos afigura um tanto curioso, em virtude de certas particularidades verificadas ao exame objetivo e, principalmente, do resultado paradoxal que apresentou ao exame funcional. E' possivel que estejamos dando fóros de importancia a um fáto, talvez simples demais; em circunstancias como esta, em que o diagnostico exato depende, em parte, dos informes do paciente, não sabemos bem de que duvidar mais: si da exatidão desses informes ou da orientação dos nossos exames. De qualquer modo, resta-nos a satisfação de poder dizer que, com paciencia e cuidado, tudo fizémos para nos aproximar o mais possivel da verdade. Trata-se do seguinte:

Ha cerca de 2 mezes veio á nossa consulta a menina V. B. de 11 anos de idade, queixando-se do ouvido D. Pela historia pregressa conseguimos saber que, ha mais ou menos 2 anos, sentiu pela primeira vez dores nesse ouvido, sob forma de agulhadas não muito intensas; não mencionou febre, nem zumbidos, nem corrimento auricular de especie alguma. Nessa ocasião procurou um medico especialista, o qual receitou um remedio para pingar no ouvido e injeções fortificantes. Melhorou muito, tendo desaparecido as dôres.

Mais ou menos 15 dias antes da consulta que nos fez, os sintomas recomeçaram, acrescidos de zumbidos, mais intensos à noite, e uma leve surdes; as dores, em caráter paroxistico como da primeira vez, eram agora um pouco mais intensas. Nenhuma reação febril. Estado geral ótimo. Antecedentes familiares sem importância. Wassermann negativo nos pais. Dois irmãos sadios.

Pela otoscopia verificamos que quasi toda a membrana timpanica, com exceção apenas de uma pequena area em forma de crescente na porção postero-inferior, apresentava-se de coloração castanho-claro, tendendo ao vermelho na periferia, sem relevos, dando a impressão de uma alteração qualquer da propria membrana. Pensando na hipotese mais simples, isto é, de se tratar de cerumen aderente á membrana, apesar do aspeto não o indicar, tentamos remove-lo delicadamente com algodão montado em estilete, sem o minimo resultado. Não havia pontos dolorosos na mastoide, nem infartamento dos ganglios regionais. O exame funcional deu os seguintes resultados:

Via aerea: O D. - diminuição do limite de audição da voz cochichada, tanto para os fonemas agudos como graves; O. E. - normal.

Via ossea: Schwabach: O. D - prolongado. Rinne: O. D - invertido.
O. E - normal. O. E - normal

Weber: - lateralisado para o ouvido são.

Esta ultima prova, o Weber lateralisado para o lado são, em flagrante desacôrdo com o Schwabach prolongado e o Rinne invertido, nos surpreendeu, pois só ela falava num comprometimento do ouvido interno. Mas era preciso excluir a hipotese de uma informação inexata. Repetimos a prova varias vezes aplicando o diapasão ora no verter, ora na fronte e mento; o resultado era sempre o mesmo. A doentinha era dócil, compreensiva, atenciosa; temos quasi a certeza de que não adulterava os informes. Mau grado a discordancia do resultado das provas acumetricas, fomos forçados a admitir tambem uma possivel lesão do aparelho de percepção.

Receitamos um analgesico e carbonato de sodio em veiculo glicerinado para pingar no ouvido e um desinfetante nasal; "per os" prescrevemos Acoegenol. Dez dias após vimos de novo a paciente: o aspéto do timpano era o mesmo; a surdez persistia; as dôres e os zumbidos tambem. Insistimos na medicação. Mais 10 dias. Nenhuma melhora. O cerumen, si era cerumen, não havia mudado de aspéto, apezar do dissolvente; as tentativas para retira-lo foram mais uma vez infrutiferas. As provas da audição, novamente feitas, deram identicos resultados.

Não sabiamos o que pensar: faltava o aspéto caracteristico de corpo estranho ceruminoso ou epidermico. A miringite primitiva é rara; propagada não podia ser, pois faltavam os sinais classicos de inflamação. Que havia uma alteração no aparelho de transmissão era evidente: o exame objetivo, o Schwabach e o Rinne provavam isso sobejamente. Mas aquela imagem timpanica e o Weber nos confundiam bastante.

Resolvemos consultar a opinião de um de nossos chefes. Pedimos ao Dr. Mattos Barretto que examinasse a doentinha. Sua impressão foi a de que se tratava de cerumen; tentou tambem retira-lo, sem resultado. As provas acumetricas por ele feitas, confirmaram inteiramente as precedentes, o que levou tambem a achar o fáto interessante. Na probabilidade admitida de um processo inflamatorio discreto, prescrevemos infravermelhos e vitaminas A e D.

Com 4 banhos de luz a situação permanecia a mesma. No 5° pingamos, antes, algumas gotas de agua oxigenada no conduto, para esclarecer de vez a questão de cerumen. Meia hora após, terminada a aplicação eletrica, sondamos o timpano cautelosamente com o estilete e tivemos a satisfação de vêr que aquela porção anomala, que parecia fazer parte da membrana, movia-se num bloco unico. Uma vez pinçado, o corpo estranho foi extraido sem maiores dificuldades. O seu aspéto era o de um disco, muito delgado, consistente, de conformação identica à da membrana timpanica, á qual aderia em quasi toda a sua extensão.

Lamentamos não poder apresentar aos colegas esse interessante corpo estranho, mas a progenitora da doentinha, no momento, mostrou desejos de leva-lo e nós não soubemos recusar, mesmo porque ainda não tinhamos a intenção de trazer o caso ao vosso conhecimento.

Na inspeção que fizemos em seguida á extração do corpo estranho, o timpano mostrou-se integro, com o seu aspéto caracteristico; apenas a porção correspondente ao cabo do martelo apresentava-se hiperemiada.

Para contrôle fizémos de novo as provas funcionais da audição: vóz cochichada audivel a 5 metros; Schwabach e Rinne normais. Fáto interessante, o Weber era agora ouvido indistintamente de ambos os lados; repetido tambem aqui varias vezes, os resultados, como no primeiro exame, coincidiram sempre: as respostas eram prontas, sem as vacilações de quem não sabe informar com segurança.

Vimos a paciente alguns dias após, completamente curada: dôres, zumbidos e surdês haviam desaparecido totalmente.

Como vêm os caros colegas, o caso é banal. De interessante apresenta apenas a forma e a situação do corpo estranho e o Weber lateralisado para o lado normal. Mas, este ultimo, apesar dos pesares e de todo o credito que possamos dedicar aos meritos informativos da paciente, não chega a convencer como fáto indiscutivel. A duvida permanecerá sempre.

Fizémos, rapidamente e por alto, uma busca na literatura mais recente: referencias existem sobre corpos estranhos, mas nada vimos que se assemelhasse ao nosso caso, quer no aspéto, quer no resultado das provas acumetricas. O Dr. Mario Ottoni de Rezende, na Revista Oto-laringologica de S. Paulo, numero 1, volume 1, refere um caso de vertigens, ataxia e certa surdês num velho de 60 anos, em que havia uma rôlha ceruminosa obturando completamente o conduto auditivo direito. O Weber era, como de regra, lateralisado para esse lado. Tres dias após retirado o cerumen, os sintomas todos desapareceram.

O autor procura explicar essa sintomatologia (tonturas com sensação de queda) do seguinte modo: haveria nesses casos uma grande flacidês dos ligamentos da platina do estribo na janela oval, flacidês esta que facilitará a sua penetração e o exagero da pressão intra-labirintica, por uma compressão imediata sobre o cabo do martelo, ocasionada pelo proprio peso da rôlha de cerumen.

O nosso caso não era tão complicado: dos sintomas referidos acima havia só a surdês. Mas seria interessante saber se essa mesma flacidês de ligamento, suspeitada num velho de 60 anos, poderá tambem existir em individuos de baixa idade e se o consequente aumento da pressão intra-labirintica poderá influenciar os resultados das provas auditivas, simulando uma lesão de ouvido interno.

E" nosso intento, daqui por diante, observar mais cuidadosamente a questão dos corpos estranhos do ouvido, afim de esclarecer melhor o caso presente.




(*) Observação apresentada em 22 de setembro de 1940, na reunião mensal da Clinica oto-rino-laringologica da Faculdade de Medicina de S. Paulo (Serviço do prof. Paula Santos).

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