O Exame Vestibular na Criança Normal*
Autor(es):
Pedro Luiz Mangabeira Albernaz 1,
Maurício Molavasi Ganança 2,
Ivano Marques do Rocha 3,
Maria Ester Quartim Cunha Fonseca 4
Paulo Augusto Achucarro Silveira 4
Introdução.
O sistema proprioceptivo-vestibular constitui o primeiro meio de comunicação do ser humano, calcado nas sensações profundas e nas relações físicas com o espaço, e exteriorizando-se através dos diferentes estados do tênus muscular. As alterações na sua organização e integração, muito mais freqüentes do que se supõe, podem interferir na aquisição e estruturação da linguagem, a máxima expressão da comunicação.
Assim, a patologia vestibular pode representar atuação de alta responsabilidade na eclosão de determinadas perturbações da fala e retardos motores. Diante dêstes distúrbios, somos obrigados, portanto, a realizar a exploração semiológica adequada do aparelho vestibular, principalmente porque a identificação do seu acometimento permitirá estabelecer um prognóstico de evolução benigna na maioria dos casos, face a procedimentos cinesioterápicos.
O propósito dêste trabalho foi a investigação da função labiríntica na criança pequena aparentemente normal e comparar os nossos achados com os da literatura especializada, controvertida em muitos aspectos. Pareceu-nos indispensável a compreensão exata do comportamento do aparelho vestibular infantil, funcionalmente diverso do adulto pelo menos em relação à criança pequena, para poder avaliar com segurança as suas modificações -patológicas.
Análise da Literatura.
Minkowski5 (1946) afirma que o aparelho vestibular já está definitivamente formado no embrião humano por volta do segundo mês de gestação.
Odesenvolvimento precoce do nervo vestibular em relação a outros nervos sensitivos e sensoriais é conhecido desde as investigações de Flechsig e Bechterew, citados por Precechtel8, (1925). Êstes autores verificaram também que o ramo vestibular do VIIIº nervo crânico está totalmente mielinizado em tôrno do 4.º ou 5.º mês de gestação, ao passo que o ramo coclear sómente se completa ao final do primeiro ano de vida.
Como a função depende do grau de mielinização, depreende-se ser mais importante o estabelecimento de um esquema corporal de equilíbrio do que a elaboração da capacidade auditiva, nas fases mais iniciais da evolução humana.
O sistema vestibular, filogenèticamente muito antigo, e a proprioceptividade, são permanentemente excitadas pelas condições lábeis de equilíbrio do Ereto em um meio líquido onde se movimenta e modifica freqüentemente a sua posição. Graças a esta constante solicitação as funções proprioceptivas e vestibulares progridem precocemente.
De acordo com Schrager & Cowes15 (1968) a coesão funcional entre o aparelho vestibular e a proprioceptividade é tanto mais estreita quanto menor é a criança.
Muitos foram os pesquisadores que se preocuparam em investigar a função labiríntica na criança pequena, através de estímulos calóricos e/ou rotatórios, com e sem electronistagmografia.
Inúmeras são as dificuldades técnicas descritas na realização e interpretação dos diversos testes empregados em recém-nascidos e prematuros, a ponto de alguns autores considerarem impraticável a exploração funcional do labirinto, nesses casos.
Os achados mencionados na literatura nem sempre são concordantes, quer qualitativa quer quantitativamente.
Em relação às provas calóricas, Hald4 (1909), Ruttin12 (1910), Precechtels (1925), Vesselle18 (1925), Quirós9 (1966) e Rius11 (1968) em prematuros e/ou recém-nascidos (horas, dias, semanas ou até dois meses), ou não encontraram a resposta nistágmica ou verificaram a ocorrência de movimentos oculares ou cefálicos nato comparáveis ü reação normal do adulto.
Em flagrante constraste, Thornval16 (1921), Galebskys (1927), Arnauad (1938) e Mitchell & Gambon7 (1969) evidenciaram a presença de nistagmo pós-calórico em crianças incluídas na mesma categoria e em períodos etários semelhantes.
Dos pesquisadores citados, os que se dedicaram também à exploração vestibular através de excitação às provas rotatórias, verificaram que, nos mesmos casos, havia concordância com os achados às provas calóricas, no que concerne à presença ou ausência da reação típica.
Nas experiências que demonstraram a existência do fenômeno reacional nistágmico, na criança pequena, as diferenças básicas em relação ao que ocorre no adulto, foram as seguintes: 1) intensidade menor da resposta; 2) ausência da componente rápida (com bloqueio dos olhos no olhar extremo de mesmo sentido da componente lenta) ou sua extrema pobreza; 3) movimentos associados da cabeça (nistagmo cefálico), geralmente superposto ao nistagmo ocular e no mesmo sentido da componente lenta, quando o segmento cefálico permanece desviado; e 4) os movimentos nistágmicos são irregulares, provàvelmente por falta de fixação do olhar, muito semelhantes aos observados no adulto, nas fases inicial e final da narcose.
Mitchel & Gambon7 (1969) observaram que a maioria das crianças normais mostrou resposta vestibular nítida a estímulos calóricas e rotatórios ao redor de 6 semanas em diante a reação nistágmica estava provàvelmente completamente desenvolvida. Tibbling17 (1969) verificou que a duração do nistagmo pós-rotatório está muito reduzida na criança até 12 meses e que a velocidade angular da componente lenta decresce com o aumento da idade, até os 15 anos de idade.
Em relação à patologia vestibular e suas implicações com os distúrbios da linguagem, o trabalho básico é o de Precechtel (192,5) descrevendo o chamado "Syndrome typique du défant congénital de l'apparell otolithiqueú, cujas características são as seguintes:
1) posição fetal anormal (apresentação de nádegas ou transversa no momento do parto);
2) defeitos estáticos nos primeiros anos de vida, com retardo na aquisição e manutenção de posturas e da marcha;
3) retardo no aparecimento da fala;
4) deficiências nas respostas vestibulares pós-calóricas (com ou sem resposta às provas rotatórias).
Esta síndrome de desintegração ou desorganização proprioceptivo-vestibular pode surgir com quadros variáveis em sintomatologia e intensidade e é muito importante saber reconhecê-la, pois é compensável por reeducação motora adequada.
Quirós10 (1968) acredita que não é fácil determinar a origem vestibular nos transtornos da criança pequena, que devem ser muito mais freqüentes do que se imagina, determinando atraso na aquisição e desenvolvimento da motricidade e da fala. Chama a atenção para a necessidade de distinção com diversas outras síndromes que do ponto de vista foniátrico podem ser confundidas com as afecções propriocaptivo-vestibulares: síndrome afasoidea, apractognosia infantil, surdez troncular maturativa, surdez troncular Integrativa, surdez cortical, e lesão subcortical bilateral. A distinção entre estas mal chamadas "afasias infantis" deve ser efetuada lançando-se mão de vários recursos: 1) antecedentes de perturbações na gravidez e/ou parto; 2) evolução motora; 3) esquema corporal; 4) orientação espacial; 5) condicionamento táctil-visual; 6) comportamento; 7) comunicação gestual; 8) desenvolvimento da fala: 9) compreensão da palavra; 10) exame neurológico; 11) audiometria tonal condicionada e direcional; 12) exame vestibular, e 13) leitura e escrita.
As alterações da linguagem escrita ou falada presentes são: disartrias, dislalias, dilexias e disgrafias nos quadros acima citados.
Também na disfemia (gagueira) já se encontraram alterações vestibulares, na incidência particularmente elevada e detectada especialmente à electronistagmografia: em 47% dos casos, para Schilling14 (1962) e em 30%, para Zerneri19 (1969).
Muito significativa, igualmente, a comprovação de que existe um paralelismo entre perda auditiva e comprometimento vestibular nas populações de crianças disacúsicas. Em 57 crianças surdas, Sandberg & Terkildsenls (1965) encontraram cêrca de 43% de casos em que a prova calórica com electronistagmografia evidenciou a ocorrência de alterações vestibulares, Diepeveen & Jensen2 (1968) examinaram 55 crianças totalmente surdas e observaram que apenas 15% delas possuiam aparelho vestibular intacto, usando o mesmo método.
A colheita de dados que pudemos fazer da bibliografia consultada permitiu-nos assim, aquilatar a importância do conhecimento do estado da função vestibular na criança com atraso motor, distúrbios da linguagem ou da audição, justificando o propósito desta pesquisa.
Material e Métodos.
Esta pesquisa foi realizada na Clínica Otorrinolaringológica da Escola Paulista de Medicina e do Hospital Municipal de São Paulo.
Foram submetidas às provas calórica e rotatória 24 crianças aparentemente normais, de idade variável entre algumas horas a 120, dias de vida e ainda, entre elas, prematuros de oitavo mês (quadro I).
Utilizamos um electronistagmógrafo Beekman RS Dynograph 98G0 ou um polígrafo Grass 5 P1 para registrar os movimentos oculares no plano horizontal, à prova calórica. A constante de tempo empregada foi 3 segundos. Efetuaram-se provas térmicas separadamente nos dois ouvidos a 4°C, 10°C e 20oC, durante 40 segundos par irrigação aquosa (4°C) ou durante 80 segundos à estimulação com ar (10°C e 20OC), esta última através de equipamento eletro-mecânico especifico (Ototermoar) descrito por Mangabeira Albernaz, Ganança, Imperatriz & Lamoglia Nettos (1971). O teste foi sempre realizado com os olhos cerrados e em ambiente semi-obscurecido e respeitou-se o intervalo de 5 minutos entre a excitação de um ouvido e do outro. A prova rotatória permitiu a avaliação da função horizontal, rotatória e vertical, sendo a criança colocada na posição adequada por um colaborador instalado na própria cadeira de exame; a estimulação consistia em executar 10 voltas em 10 segundos, em sentido horário e anti-horário.
Houve, portanto, a preocupação de realizar estímulos labirínticos suficientemente intensos para promover o aparecimento de reação vestibular, se de fato ela ocorresse.
Fêz-se, em todos os casos, pelo menos uma tentativa de se obter o registro do reflexo cócleo-palpebral, obtido por estimulação sonora a 80-90 ou 100 decibéis, com o audiómetro infantil Rudmose, em cada ouvido.
Não foi feita análise quantitativa dos parâmetros da resposta nistágmica, diante da dificuldade de calibração direta dos movimentos oculares, por razões óbvias.
Resultados e Comentários.
Tódas as crianças submetidas à exposição sonora evidenciaram alterações concomitantes da mímica facial e registro do reflexo cócleo-palpebral à electro-oculografia. Esta atitude reativa representou um indício a mais a corroborar e confirmar o pré-requisito de aparente higidez da casuística examinada, relativamente à audição.
A prova calártea com electronistagmografla forneceu elementos valiosos para a interpretação da reação labiríntica (Quadro I). Em algumas ocasiões, a resposta vestibular não foi visível mas plenamente registrada, como sóe ocorrer também no exame de adultos.
Observamos que houve reação nistágmtca indiscutível em prematuros e recém-nascidos, porém sòmente à estimulação mais intensa (4ºC). A diferença principal entre os dois grupos reside no fato de que êstes últimos apresentam, com maior freqüência, respostas menos intensas e com desvio conjugado do olhar no sentido da componente lenta do nistagmo mais duradouro. Este bloqueio do globo ocular nem sempre foi permanente enquanto perdurasse a reação labiríntica. A figura 1. mostra que durante a resposta o desvio conjugado do olhar se desfaz, ocorrendo então períodos de bloqueio intercalados com resposta nistagmica. Veja-se também, na mesma figura, que a componente rápida do nistagmo não está bem delineada, como tínhamos verificada na colheita bibliográfica e o que nos faz supor a forma reticular do tronco cerebral, implicada na sua génese, não esteja suficientemente amadurecida.QUADRO 1 - DADOS DO EXAME VESTIBULAR COM FLECTRONISTAGMOGRAFIA NA CRIANÇA APARENTEMENTE NORMAL
FIGURA 1
A figura 2. mostra uma parte do registro em uma criança de 7 dias, e vê-se que ainda é impossível distingüir a componente rápida, o que, aliás, sucedeu, de modo geral, até aproximadamente os 45 dias de vida.
FIGURA 2
À medida que a criança ganha em idade, menos intenso e o estímulo necessário para a obtenção da resposta vestibular. Enquanto que a reação só é conseguida a 4°C até o 7.º dia de vida, já conseguimos obté-la a 10ºC até o 60º dia e, a partir dêste período etário e até o 120.º dia, metade dos casos apresenta resposta nistágmica mesmo a 20ºC.
Ainda à figura 2, vemos o registro de reação labiríntica em crianças com 2 meses e 4 meses, respectivamente, em que o traçado demonstra uma semelhança muito grande com o de adultos, com a componente rápida do nistagmo completamente constituída.
Portanto, verificamos que tanto recém-nascidos como prematuros apresentam nistagmo pós-calórico, embora de características diversas daquele do adulto. Ficou claro também, que é preciso empregar estímulos mais intensos do que os utilizados para crianças com mais de 7 dias, para evidenciar a resposta vestibular naqueles dois grupos. Além disso, a reação do prematuro é mais nítida do que a do recém-nascido, o que de certa forma é bastante lógico, pois aquêle tinha, em nossa casuística, pelo menos 20 dias de vida extra-uterina e portanto com maior oportunidade temporal de adaptação às novas condições de equilíbrio.
Igualmente encontramos, pràticamente em tôdas as crianças dêsses dois grupos e também até os 60 dias de vida, a presença do desvio conjugado do olhar, parcial ou total, proporcionalmente menos intenso a medida que a criança se desenvolve.
A partir dos dois meses de vida, a criança passa a se comportar como o adulto, em linhas gerais.
A literatura faz referência, ainda, a movimentos cefálicos no sentido da componente lenta, acompanhando a reação labiríntica em um número significativo de crianças pequenas. Este sinal ocorreu nitidamente em apenas 3 das crianças que examinamos, tôdas com menos de 7 dias de vida.
Em relação à prova rotatória, os resultados são muito semelhantes, muito embora não se possa analisar cada ouvido separadamente, razão porque tem menor importância semiológica do que a prova calórica. Chamou a atenção o fato de que a função rotatória sempre foi a mais difícil de observar, mesmo nas crianças maiores, até 4 meses de idade.
Conclusões.
Em vista do que nos foi dado observar, cremos poder concluir que:
1) a criança pequena, desde o nascimento e mesmo a prematura, revela reação labiríntica à estimulação térmica e rotatória, mas de características diferentes da do adulto em vários aspectos, a saber: 1) a intensidade da resposta é menor; 2) ocorre concomitantemente desvio conjugado do olhar no sentido da componente lenta. 3) também pode surgir, porém mais raramente; 4) a componente rápida do nistagmo pós-calórico não está bem diferenciada.
2) a partir dos 2 meses de idade estas diferenças desaparecem e a criança passa a se comportar pràticamente como o adulto.
Resumo.
Os autores investigaram a função vestibular de 24 crianças, entre recém-nascidas e até 4 meses de idade, às provas calórica (com electronistagmografia) e rotatória. Observaram que até os 2 meses de idade a criança sempre apresenta resposta labiríntica, mas as suas características diferem das do adulto, pela menor intensidade, ocorrência de desvio conjugado do olhar e/ou do segmento cefálico no sentido da componente lenta do nistagmo e pela pobreza da componente rápida.
A partir dos 2 meses, a criança comporta-se de forma similar ao adulto, cessando as diferenças citadas.
Summary
The nystagmus patterns obtained by a standardized vestibular stimulation were studied in normal children from birth to 120 days of age.
From birth to 60 days of age all children showed nystagmic reaction, with characteristics that are different from adult reactions in the following:
a) shorter intensity;
b) presente of conjugade deviation of the eyes and deviation of the head;
c) absent or poor by developed quick component of the nystagmus.
No differences occur between children after 60 days of age and adulta.
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* Trabalho apresentado nas JORNADAS DE REABILITAÇÃO EM OTORRINOLARINGOLOGIA (Rio de Janeiro, 23.27 de agosto de 1971), organizadas pela FONDATION PORTMANN.
1 Professor Titular da Disciplina d.e Otorrinolaringologia da Escola Paulista de Medicina.
2 Professor Assistente - Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Escola Paulista de Medicina.
3 Professor Titular da Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade Católica de Medicina de Pelotas (ILS).
4 Acadêmicos da Faculdade de Medicina de Santo Amaro (SP) e Estagiários da Disciplina de Otorrinolaringológia da Escola Paulista de Medicina.