Ocorrências de Anomalias do Facial na Estapedectomia
Autor(es): Pedro E. de Limo*
A importância do VII par nos processos patológicos e intervenções cirúrgicas do ouvido média é conhecida por todos os especialistas. Suas relações íntimas com a caixa do tímpano fazem com que seja molestado fàcilmente por manobras cirúrgicas ou agredido por infecções localizadas nessa região.
Com efeito, o facial pela sua porção horizontal ou timpânica na parede posterior, com seu trajeto de um centímetro, aproximadamente guarda relações íntimas com elementos que compõem o ouvido médio.
Partindo do gânglio geniculado, o nervo se obliqua ligeiramente para trás, para fora e baixo acompanhando o eixo do rochedo. Na altura do antro flexiona-se fortemente em direção ao forame estilo-mastoídeo, constituindo o terceiro seguimento, porção mastoídea ou vertical.
Várias e importantes são as relações do nervo em seu seguimento horizontal ou porção timpânica. Assim, segundo Lazorthes (1955), o nervo fica muito próximo do vestíbulo, para dentro. A relação que mais nos interessa, no presente caso, é a que se estabelece por fora, ou seja com a caixa do tímpano. De fato, o nervo em seu canal ósseo, cujas paredes são muito delgadas, fica separado e protegido dos processos patológicos que se instalam no ouvido médio, ao mesmo tempo que estabelece relações íntimas com vários acidentes anatômicos. As vêzes, no entanto, o canal faz saliência para o interior da caixa e, em alguns casos, apresenta deiscência do canal, ficando o nervo em posição sub mucosa. Quando o facial apresenta-se assim exposto, torna-se ainda mais vulnerável.
Por cima do nervo vamos encontrar o canal semi-circular externo ou lateral, estabelecendo-se relações muito próximas, notadamente em sua porção mais anterior. Posteriormente, ainda em seu trajeto na caixa do tímpano, estas relações são mais distanciadas e servem como ponto de reparo nas trepanações da mastóide, com abertura e alargamento do antro.
Quanto ao nervo facial, ainda em sua porção timpânica, encontramos relações muito estreitas com o canal do músculo do estribo e a janela oval ou vestibular.
A janela situa-se no fundo da fosseta oval ou infundiliforme e é obliterada pela platina do estribo por meio dos ligamentos anulares. Medindo cêrca de 2,5 por 1,5 milímetros, a janela apresenta dois bordos paralelos, o anterior e o posterior. O interno ou posterior fica mais próximo da parede labiríntica e é contornado pelo dueto do facial ou o próprio facial, quando êle se apresenta com descência. Essa projeção do nervo sôbre o bordo da platina, visível ao microscópio, dificulta as manobras cirúrgicas na estapedectomia, dando como resultado, por vêzes, discreta paresia da musculatura da face. Suas relações na porção timpânica por vêzes são alteradas de tal maneira, que nos atos cirúrgicos podemos nos deparar com situações difíceis. Em seu trajeto, partindo do gânglio geniculado, deixa de estabelecer simples vizinhança com o bordo interno da janela, para se projetar para dentro da caixa do tímpano, passando sôbre a platina que fica parcialmente encoberta pelo nervo. Em tais casos, é pràticamente impossível uma boa execução da estapedetomia, pois se corre grave risco de lesar o nervo e os resultados posteriores são duvidosos ou mesmo desastrosos. Pode, ainda, como veremos, o facial passar além dá platina. em pleno promontório.
Os estudos sôbre a anatomia do facial em sua porção timpânica, notadamente suas relações com a janela vestibular, sòmente de há pouco tempo têm sido tratados, visto que a cirurgia desta janela só muito recente incorporou-se à rotina otológica, com a prática da estapedectomia. Antes, ò nervo facial era objeto de exploração cirúrgica nas síndromes compressivas, sendo seu trajeto mastoídeo estudado em detalhe, como no trabalho de Kettel (1946) em que vemos as figuras das três posições do trajeto do facial nessa porção, encontrados pelo autor.
Embora Hélio Hungria (1968 - pág. 371) considere que "As anomalias do trajeto do nervo facial são excepcionais e, quando presentes, estão geralmente associadas a más formações congênitas do aparelho auditivo", por origens ontogênicas, tivemos em nossas atividades cirúrgicas trajeto anômalo do VII par, sem que houvesse outra anomalia para o aparelho auditivo, do ponto de vista anatômico. Idênticas observações foram registradas por Ermiro de Lima, em comunicação pessoal, como veremos adiante.
Trabalho recente de Donaldson (1968) trata do trajeto do facial em sua porção labiríntica com relação à janela oval. Mieblke (1965) mostra alguns aspectos da topografia do nervo na caixa do tímpano, sendo seu segundo esquema o que mais se aproxima da posição observada em um dos nossos pacientes. Venturini (1964) relata um caso pessoal de Shea em que o facial bifurca-se em frente ao estribo. Encontramos o facial passando sôbre a platina e Ermiro de Lima observou o nervo passando pelo bordo externo da janela.
Observações
Caso I: - G. P. S. Feminina, bras. branca, solteira, 20 anos. Prontuário 165.675. Hosp. Serv. Estado.
Veio à consulta com queixas de hipoacusia, zumbidos e barulhos em ambos os ouvidos. Nega parentes surdos, doenças infecciosas e uso de medicação tóxica.
Exames otorrinolaringológicos de rotina, normais. A otoscopia mostrou conduto estreito, tímpanos íntegros com pouca brilho. Diapasões e audiometria revelaram acentuada hipoacusia e pouca diferencial óssea.
Estapedectomia em OD, em 11-7-67.
Anestesia local. Incisão clássica, com deslocamento do retalho e abertura da caixa do tímpano. Curetagem do ânulos, com exposição do ossículos, individualisação do nervo facial que se projetava sôbre a janela oval, (Fig. 1) encobrindo quase tôda a platina que se apresentava um pouco espessa. Conseguimos retirar parte da platina e colocar a prótese (arame-gelfoam), porém o fatiai ficou deslocado, formando na prótese pequeno acotovalemento. Reposição do tímpano e curativo. Cobertura antibiótica de rotina.
No dia seguinte instalou-se paralisia facial bastante acentuada em tôda hemi face. Prescrevemos antibiótico, cortesteroide, vitamina B12 e B1, por dez dias. Embora a audição tenha tido pequeno ganho (10 db), a paralisia em nada melhorou.
Em 31-7-67 reoperamos, tendo substituído a prótese de arame por um teflon. Continuamos com a mesma medicação e oito dias após notamos discreta melhora, com esbôço do sulco nasomentoniano. Colocamos por três vêzes, através a membrana timpânica, meio centímetro de DepoMedrol, que em parte se escoava pela tuba, e os resultados foram nulos. Como os testes galvânicos acusassem boa reação do facial, enviamos ao Serviço de Fisioterapia, aonde foram feitas uma série de massagens e dez aplicações de corrente galvânica; não observamos melhora.
Finalmente, em 6-10-67, três meses após a primeira operação, resolvemos fazer nova inspeção da caixa do tímpano, com a colaboração de Ermiro de Lima.
Fizemos incisão endo-pré-auricular, para melhor campo, com deslocamento do retalho até o âriulus que foi mais rebaixado com broca. Retiramos a bigorna, pois não havia mais possibilidade de recuperação auditiva por comprometimento coclear, deixando o teflon prêso à janela. Individualisamos o facial que se achava rechassado em ângulo pela prótese, que foi retirada. O nervo facial foi recolocado em seu leito sôbre a janela oval e inspecionamos seu trajeto até sua parte rugis anterior, comprovando sua integridade. Para evitar fibrose cicatricial, cobrimos o nervo com frigmento de mucosa labial. Repomos o tímpano e retalho em suas proposições. Cobertura antibiótica. A Fisioterapia fêz ainda uma série de quinze massagens e aplicações de corrente galvânica. Após dois meses e meio a paralisia facial cedeu quase por completo, deixando, contudo, como sempre acontece, pequena sequela observada quando das contrações faciais.
Caso II: - A G. C. Feminina, brasileira, branca, casada, 34 anos. Prontuário 219.503 Hosp. Serv. Estado.
Queixava-se a paciente de hipoacusia, zumbidos e barulhos nos ouvidos. Nega doenças infecciosas e uso de medicação tóxica. Exames otorrinolaringológicos, normais. Audiometria revelou hipoacusia em ambos ouvidos, com boa diferencial óssea.
Estapedectomia OD, em 29-2-68.
Anestesia geral. Incisão clássica, deslocamento do retalho e tímpano. Curetagem do ânulus, com boa exposição dos ossículos. Platina um pouco espessa. Individualisamos o facial projetando-se sôbre a platina em sua parte anterior (Fig. 1). Trepanação e retirada da platina. Prótese (arame-gelfoam) bem adaptada, ficando junto ao facial. Reposição do tímpano e cobertura antibiótica.
FIG. 1 - O Facial projeta-se sôbre a platina do estribo. Casos n.ºs I e II.
No dia seguinte manifestou-se paralisia facial, mais nos seus ramos inferiores, correspondentes à musculatura labial. As contrações peri-orbitárias e superciliares mostravam-se quase normais.
Fizemos um esquema terapêutico de antibiótico e cortesteroide, associado a vitamina B12 e B1, por um período de 15 dias. A paralisia foi cedendo após as duas primeiras semanas, para desaparecer por completo depois de um mês e meio, permanecendo o ganho auditivo dentro dos limites esperados.
Caso III: - S. A. M. M., brasileiro, masculino, branco, 14 anos.
Em 1963 veio à consulta por sentir hipoacusia em ambos ouvidos desde criança, não notando agravamento no decorrer dos anos. Não se queixa de zumbidos ou barulhos. Nega doenças infecciosas e medicação tóxica. Avós paternos e maternos com surdez.
Exames otorrinolaringológicos normais. Tímpanos íntegros e com brilho. Os testes com diapasões e a audiometria tonal revelaram grande perda auditiva, mas muito boa reserva coclear. Estapadectomia OD, em 4-7-63. Operador Ermito de Lima e Pedro de Lima. Anestesia geral.
Incisão clássica com abertura da caixa. A articulação incudo-estapedial muito oculta o que levou a um desgaste amplo do ânulus. Platina muito espessa. O facial foi identificado, em trajeto completamente anômalo. Passava pela margem externa ou anterior da janela oval, isto é, contornando a platina (Fig. 2). O nervo foi descoberto uns três milímetros. Feito um orifício na parte central da platina e colocado aponeurose temporal e um cone de politileno articulando-se com a bigorna. Post operatório normal e com muito boa recuperação auditiva, conforme mostra o audiograma.
FIG. 2 - O Nervo contorna a janela oval, passando pela sua margem externa. Caso n ° III.
Caso IV: - O mesmo paciente do caso III.
Estapedettomia OE, em 14-7-66.
Três anos após a estapedectomia do ouvido direito, o paciente submeteu-se a mesma intervenção do outro ouvido, com o mesmo cirurgião.
Anestesia geral. Incisão clássica, com abertura da caixa desgaste do rebordo, com exposição dos ossículos.
O estribo apresentava-se atrofiado, com suas creras não ossificadas, mas sim em forma de feixes fibrosados. A platina espessa. Foi identificado o facial, que tinha um trajeto completamente anormal e diferente do encontrado no ouvido direito. Passava o nervo sôbre a platina e entre as crera do estribo, tornando impossível qualquer manobra cirúrgica sôbre a janela (Fig. 3). Foram cortadas as creras, e feito pequeno orifício no bordo da platina. Um teflon em ponta de bisel foi posto, mas desviando um pouco o facial. Recomposição do tímpano e retalho.
No dia seguinte instalou-se uma paralisia facial acentuada. Por um mês foram administrados antibiótico, cortesteroide, vitamina B1 e B12 sem se obter o mínimo resultado tanto da paralisia, como da audição.
Impunha-se uma reoperação, o que foi praticada, com remoção da prótese (teflon). Depois ele mês e meio a paralisia facial cedeu por completo.
FIG. 3 - O Nervo Facial, em seu trajeto na caixa do tímpano, passa entre as crura do estribo. Caso n.º IV.
Comentários
Estes casos por nós apresentados, embora em pequeno número, servem contudo para chamar a atenção, quanto aos riscos que o nervo facial apresenta nas estapedectomias. Tida como uma intervenção simples, já com seus tempos perfeitamente sistematisados, normalmente o cirurgião, em especial os que se iniciam na otocirurgia, tem a atenção voltada sòmente para as possíveis lesões da cóclea, concentrando-se na cirurgia pura e simples da trepanação da platina e colocação da prótese. O facial, porém, que na sua anatomia normal nenhum risco oferece às manobras cirúrgicas dessa operação, pode apresentar dificuldades e riscos de grande monta, como determinar paralisias graves nem sempre reversíveis. Nossos casos I e IV são bem ilustrativos do quanto de dificuldades, riscos e trabalhos pode dar o nervo facial na estapedectomia.
Sumário
Refere-se o autor à importância do Nervo Facial na cirurgia do ouvido, em especial na Estapedectomia. Estuda as relações do Nervo em sua segunda porção com a caixa do tímpano. Relata 4 (quatro) casos de Estapedectomia nos quais o Nervo Facial tinha um trajeto anômalo. Em dois pacientes não foi possível executar a operação devido ao Nervo passar sôbre a platina. No caso n.º 4 o Nervo passava entre as cruras do Estribo tendo havido paralisia facial na tentativa de colocação da prótese. As paralisias regrediram, felizmente.
Summary
The author stresses the importance of the Facial Nerver in Ear surgery especially on Estapedectonys. He discusses the relations of such Nerve with the second portion of the timpanys case.
He describes 4 (four) Estapedectomies cases where the Facial Nerve had an anamalous configuration. On two of the parients it was impossibel to perform the operation due to the Nerve going over the Platinum. On case n.º 4 the Nerve went between the stapes crura and facial paralisis resulted in consequente of the protectie solution. Happily the facial paralisis subdied in due time.
Bibliografia
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Miehike. Adolf - Anatomy and clinical aspects of the facial nerve. Arch. otolaryng., Chicago ,91 (5) :444-445, 1965.
Venturini, Nelson B Matoso Neto, João - Otoselerose. A nova técnica de Shea com piston de tefon. (Experiência pessoal). B. otorrinolnring., Rio de Janciro, 2 (1) :35-42. Ago. 1961.
* Catedrático de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Antiga Universidade do Brasil). GB.
- Docente Livre da Cadeira de Otorrinolaringologia, da mesma Universidade.
- Médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital dos Servidores do Estado (IPASE). Rio de janeiro. GB.