ABORLccfRevista Brasileira de Otorrinolaringologia

Relato de Caso (39 CBO)

FÍSTULA CARÓTIDO-CAVERNOSA: RELATO DE DOIS CASOS E REVISÃO DE LITERATURA ..
CAROTID-CAVERNOUS FISTULA: REPORT OF TWO CASES And REVISION OF LITERATURE..

Autores:

Ângela Rúbia Oliveira Silveira.. (graduação..)

Érica Kayoko Nakamura.. (graduação..)

Leopoldo Nizam Pfeilsticker.. (mestre..)

Palavras-Chave
Fístula Carótido-Cavernosa, Trauma Facial..

Resumo
Descrição de dois casos de fístulas carótido-cavernosas pós-traumáticas e revisão da literatura referente ao seu diagnóstico e tratamento...

Keywords
Carotid Cavernous Fistula, face trauma..

Abstract
Description of two after-traumatic carótido-cavernous cases of fístulas and revision of referring literature to its diagnosis and treatment. ..

 

Instituição: Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

Suporte Financeiro:

Introdução:

As fístulas carótido-cavernosas (FCC), raras na prática do otorrinolaringologista, consistem na comunicação anormal entre a artéria carótida interna e o seio cavernoso, apresentando o trauma como fator causal mais freqüente. O objetivo deste trabalho é relatar dois casos tratados no serviço de Cirurgia e Traumatologia Maxilo-Facial da Disciplina de Otorrinolaringologia Cabeça e Pescoço da Unicamp e revisar a literatura referente ao diagnóstico e tratamento destas fistulas.

Relato dos casos:

Caso 1:

E.R.M., sexo masculino, 23 anos, relata acidente de moto há dois meses após o qual evoluiu com otorragia direita, paralisia facial esquerda, edema de órbita e perda da acuidade visual direita. Permaneceu internado em UTI por 12 dias. Há 20 dias iniciou proptose progressiva do olho direito. Nega dispnéia, disfonia, disfagia, hipoestesias ou parestesias; queixa-se de cefaléia constante desde o acidente e disacusia com secreção purulenta na orelha direita.

No exame físico constatamos cicatriz de traqueotomia fechada, ausência de fratura palpável no arcabouço esquelético facial, crepitação bilateral em articulação temporomandibular, paralisia facial periférica esquerda grau IV de House-Brackmann e perfuração inferior em membrana timpânica direita com secreção purulenta na caixa média.

No olho direito observamos quemose intensa com exposição da conjuntiva tarsal inferior, midríase paralítica, ausência de reflexo fotomotor e consensual, restrição de sua mobilidade em todas as direções, proptose, frêmito e sopro: figura 1.

Tomografia computadorizada da base do crânio mostrou fratura envolvendo região temporal direita, paralela ao canal carotídeo, atingindo o clivus e o corpo do esfenóide: figura 2. No osso temporal esquerdo não se identificou sinal de fratura.

O paciente foi submetido à arteriografia para diagnóstico de possível fístula carótido-cavernosa. Realizada com balão, a primeira tentativa de embolização não foi eficaz em razão do volume da fístula identificada. Depois de duas semanas, fechamento completo após nova embolização associando-se balão e polímero sintético. Após nove meses todos os sintomas regrediram, exceto a perda visual - figura 3.

Caso 2:

M.A.G., 21 anos, sexo masculino, relata acidente motociclístico com fratura de face tipo Le Fort II e internação em UTI por nove dias. Após alta da unidade intensiva foi submetido à cirurgia para correção da fratura. Neste intervalo, evoluindo com proptose e perda visual direita progressiva, foi encaminhado ao nosso serviço.

Ao exame físico notamos quemose do olho direito, midríase paralítica, ausência de reflexo fotomotor e consensual, restrição de sua mobilidade, frêmito e sopro ocular.

Tomografia computadorizada de base de crânio sem alterações evidentes.

Suspeitando-se de uma FCC, o paciente foi submetido à arteriografia para diagnóstico e embolização obtendo-se êxito no primeiro procedimento - figura 4,5 e 6. Após cinco meses retorno a normalidade com exceção da perda visual - figura 7 e 8.

Revisão de literatura:

O seio cavernoso foi descrito inicialmente por Ridley em 1732 "como um seio venoso cir­cular" e ganhou sua atual nomenclatura anatômica, neste mesmo ano, após Winslow demonstrar a presença de trabéculas dentro deste seio em cadáveres. Em 1964, Dwight Parkinson descreveu em detalhes sua micro-anatomia e a abordagem cirúrgica das fístulas carótido-cavernosas, cujos resultados iniciais foram desanimadores 1.

As particularidades das fístulas carótido-cavernosas decorrem de sua localização dentro da única estrutura anatômica do corpo onde uma artéria atravessa uma estrutura venosa.

Através das veias oftálmicas superiores e inferiores o seio cavernoso recebe sangue venoso que seqüencialmente é drenado via seio esfeno-parietal, seio petroso superior, plexo basilar e o plexo pterigóideo. Ao passar pelo forame lacerum a carótida interna entra no seio cavernoso em sua parede posterior e divide-se em três segmentos contínuos: 1) segmento ascendente posterior, em seu trajeto inicial 2) segmento horizontal, maior segmento da carótida intracavernosa, iniciado ao fletir-se a artéria anteriormente 3) segmento superior ascendente, ao direcionar-se superiormente.

Classificação:

Baseada nas comunicações entre a artéria carótida, seus ramos e o seio cavernoso a classificação mais aceita das FCC foi descrita por Barrow 2. Essa classificação reconhece quatro tipos de fístulas:

1. Tipo A (direta): a artéria carótida interna comunica-se diretamente com o seio cavernoso;

2. Tipo B (indireta): a artéria carótida interna comunica-se com o seio cavernoso por ramos durais;

3. Tipo C (indireta): a artéria carótida externa comunica-se com o seio cavernoso por ramos durais;

4. Tipo D (indireta): ambas as artérias carótidas comunicam-se com o seio cavernoso por ramos durais.

Epidemiologia:

As fístulas pós-traumáticas ocorrem em torno de 0,2% dos traumatismos crânio-encefálicos (TCE) e aproximadamente 75% destas são causadas por traumatismos devido a graves injúrias, como acidentes automobilísticos ou traumas penetrantes 3. Ocorre mais freqüentemente em homens adultos jovens pelo maior envolvimento destes em acidentes. Na fístula espontânea a incidência é maior em mulheres após a menopausa, sem predileção por raça 4,5.

As fístulas diretas, mais comuns, são secundárias a traumas em cerca de 70 a 90% dos casos, principalmente fraturas da base do crânio. Podem também ser iatrogênicas (angioplastia, endarterectomia, hipofisectomia trans-esfenoidal e biópsia nasofaríngea) ou espontâneas por ruptura de aneurisma da porção cavernosa da carótida ou malformação congênita que rompe espontaneamente por doença vascular ligada ao colágeno (ex: síndrome de Ehlers-Danlos), doença ateromatosa ou hipertensão. Quando comparada com a fístula dural, o tamanho da laceração na fístula direta é proporcionalmente maior, determinando a diferença do tratamento endovascular entre elas.

Fisiopatologia, sinais e sintomas:

As FCC diretas apresentam alterações hemodinâmicas diferentes das fístulas durais. Após o estabelecimento da fístula artério-venosa o fluxo e a pressão arterial são transmitidos para o seio cavernoso, provocando fluxo reverso e dilatação venosa das veias que drenam para o seio bem como o aumento do fluxo nas suas veias de drenagem habituais.

Ao terem revertido seu fluxo venoso as veias oftálmicas ocasionam ingurgitamento e congestão orbitária, impedimento de drenagem do humor aquoso com aumento da pressão intra-ocular e glaucoma secundário. A pressão intra-ocular elevada pode comprometer a perfusão da retina e resultar em diminuição da acuidade visual, uma emergência cirúrgica. Edema de estruturas orbitárias decorrente do impedimento da drenagem venosa pode levar a limitações mecânicas da movimentação dos músculos extra-oculares que, por vezes, já têm sua função comprometida pela compressão exercida sobre os nervos cranianos 6,7,8. Os seios intercavernosos podem transmitir para o outro lado as mesmas alterações hemodinâmicas ocorridas do lado da fístula, levando a quadro clínico semelhante.

O fluxo sanguíneo reverso e o aumento da pressão venosa nas veias oftálmicas determinam exoftalmia, frêmito oftálmico, quemose, proptose, diplopia e perda parcial ou total da visão. Cerca de 90% das FCC diretas e 20 a 30% das indiretas evoluem com perda visual. Glaucoma e perfuração de retina são sintomas na FCC direta e podem aparecer após dias ou semanas do TCE. Isquemia dos nervos envolvendo os nervos cranianos III, IV, V e VI podem ser precoces e evidentes por efeito de massa no seio cavernoso. De forma diferente, a FCC indireta tem evolução lenta e geralmente se manifesta com hiperemia ocular e arterialização tortuosa da conjuntiva, não ocorrendo proptose. De 20 a 50% das fistulas indiretas fecham espontaneamente após a angiografia 9. Hemorragia subaracnóidea pode ocorrer e cerca de 3% das FCC apresentam hemorragia intracraniana espontânea, na maioria das vezes fatal.

Diagnóstico:

É baseado na história clínica, exame físico e exames radiológicos. O método diagnóstico complementar, padrão-ouro, é a arteriografia digital seletiva da artéria carótida, que evidencia o tamanho e estima o débito da fístula. Têm papel adjuvante no diagnóstico a ressonância magné­tica, angio-tomografia computadorizada e Doppler trans-craniano 10,11,12. No diagnóstico diferencial devem ser lembrados os aneurismas cerebrais e malformações vasculares do olho, inflamações orbitárias, celulite retro-orbitária, exoftalmia secundária à doenças da tireóide, hemorragia retro-bulbar, neoplasia de glândula lacrimal, trombose do seio cavernoso e vasculites 13.

Tratamento:

 O tratamento atual das FCC se tornou mais eficaz, seguro e menos invasivo com o advento de novas técnicas de neuro-imagem e radiologia intervencionista.

Em 1972, Serbinenko desenvolveu o primeiro balão de uso trans-arterial para o tratamento das FCC. Os bons resultados obtidos com as técnicas endovasculares na utilização de balões destacáveis tornaram a embolização o tratamento de escolha nas FCC diretas permitindo a oclusão do orifício fistuloso, sem a ligadura do vaso portador (artéria carótida interna) em 80% dos casos. Se sua dimensão for muito grande, incompatível com o tamanho do balão, o uso de coils eletro-destacáveis diminui o orifício permitindo a oclusão da fístula remanescente 14. Após uma embolização é necessária a realização de radiografia de crânio para controle da localização do balão.

Para o tratamento das FCC indiretas tem sido preconizada a via venosa como eleição. O acesso retrógrado às veias facial e oftálmica superior através da veia jugular cateteriza seletivamente o seio cavernoso permitindo liberar em seu interior material emboligênico, produzindo a oclusão do mesmo. Trata-se de via mais segura, com menor potencial artério-trombótico, menor taxa de insucesso terapêutico e de mais fácil realização.

A migração do balão, formação de um falso aneurisma da carótida interna (que em geral regride espontaneamente), perfuração da veia oftálmica superior, hemorragia orbitária e lesão dos nervos abducente e troclear são as complicações mais comuns observadas no tratamento por embolização.

Em FCC de baixo débito a compressão manual diária por curtos períodos da artéria carótida apresenta taxa de sucesso de aproximadamente 30%. Na falha da embolização uma craniotomia pode ser indicada 15.

O tratamento medicamentoso com drogas que diminuem a produção de humor aquoso (beta-bloqueadores, inibidores da anidrase carbônica e alpha-2-agonistas) visa reduzir as complicações oculares.

Comentário final

 Apesar de rara e incomum na prática otorrinolaringológica, a FCC é uma intercorrência grave que necessita de abordagem imediata e deve ser considerada no diagnóstico diferencial de proptose ocular e traumas da base do crânio.

Referências Bibliográficas:

1. Parkinson D. A surgical approach to the cavernous portion of the carotid artery. Canad J Surg 1964; 474-83.

2. Barrow DL, Spector RH, Braun IF et al. Classification and Treatment of spontaneous carotid cavernous sinus fistulas. J Neurosurg 1985; 62: 248-256.

3. Borba R, Sonda I, Din LI, Calcagnotto FN, Marchett N, Cobalchini PC. Fístula carótido-cavernosa com epistaxe letal. Relato de caso. Arq Neuropsiquiatr 2001; 59(2-A):276-279.

4. Scott IU. Fistula, carotid cavernous. Acesso em 01/09/2007, encontrado no site www.emedice.com .

5. Keizer R: Carotid-cavernous and orbital arteriovenous fistulas: ocular features, diagnostic and hemodynamic considerations in relation to visual impairment and morbidity. Orbit 2003; 22(2): 121-42.

6. Keltner JL, Satterfield D, Dublin AB, Lee BC. Dural and carotid cavernous sinus fistulas. Diagnosis, management, and complications. Ophthalmology 1987; 94(12): 1585-60.

7. Shownkeen H, Bova D, Origitano T, Petruzzelli G, Leonetti JP. Carotid-cavernous fistulas: pathogenesis and routes of approach to endovascular treatment. Skull Base 2001; 11 (3): 560

8. Morón FE., Klucznik RP, Mawad ME, Strother CM. Endovascular treatment of high-flow carotid cavernous fistulas by stent-assisted coil placement. American Journal of Neuroradiology 2000; 26:1399-404.

9. Nishijima M, Iwai R, Horie Y, Oka N, Takaku A. Spontaneous Occlusion of traumatic carotid cavernous fistula after orbital venography. Surg Neurol 1985; 23:489-92.

10.   Derang J, Ying H, Long Y et al. Treatment of carotid cavernous sinus fistulas retrograde via the superior ophthalmic vein (sov). Surg Neurol 1999; 52:286-93.

11.   Goldberg RA, Goldey SH, Duckwiler G, Vinuela F. Management of cavernous sinus-dural fistulas. Indications and techniques for primary embolization via the superior ophthalmic vein. Arch Ophthalmol 1996;114(6):707-14.

12.   Feit RL, Louisville OD. Ocular findings point to carotid artery problems review of optometry. Orbit 2000; (7): 250-6.

13.   Lo D, Vallee JN, Bitar A, Guillevin R, Lejean L, Van Effenterre R, Chiras J. Endovascular management of carotid-cavernous fistula combined with ipsilateral internal carotid artery occlusion due to gunshot: contra-lateral arterial approach. Acta Neurochir 2004; 146:403-6.

14.   Sawlani V, Phadke R, Kumar S, Gujral RB. Gugliemi detachable coils in the treatment of carotid-cavernous fistula. Clin radiol 2004; 59:86-90.

15.   Siqueira SBP, Siqueira CMP, Landeiro JA, Junior OM. Tratamento endovascular das fístulas carótido-cavernosas. Arq Bras Neurocir 2006; 25(1): 17-22.

 

FIGURA 1
Imagem 1
PR EMBOLIZAۂO

FIGURA 2
Imagem 2
TC DA BASE DO CR¶NIO: FRATURA DE OSSO TEMPORAL DIREITO, DE CLIVUS, CORPO DO ESFENàDE E PARALELA AO CANAL CAROTÖDEO

FIGURA 3
Imagem 3
60 DIAS APàS 2¦ EMBOLIZA€ÇO

FIGURA 4
Imagem 4
ARTERIOGRAFIA PR-EMBOLIZAۂO: FISTULA CAROTIDEO CAVERNOSA

FIGURA 5
Imagem 5
FISTULA CAROTÖDEO CAVERNOSA

FIGURA 6
Imagem 6
ARTERIOGRAFIA APàS EMBOLIZA€ÇO

FIGURA 7
Imagem 7
PR-EMBOLIZAۂO

FIGURA 8
Imagem 8
5 MESES APàS EMBOLIZA€ÇO

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